terça-feira, 13 de dezembro de 2011

NOS BURACOS DO TEMPO - parte 2


O que talvez primeiramente nos passe desapercebido é justamente, ou melhor ainda, é crucialmente o que nos dará algum sentido ao episódio narrado, fazendo quem sabe, saltar dele algo do que ainda não se viu, mas que parece ligeiramente oculto na história clichê do adolescente. Supostamente todos já fizeram algo parecido ao que faz nosso Rodolfo, ou quando não, quiseram muito fazer e não fizeram por serem por demais perigosas as circunstâncias ou em outros casos, por serem muito contundentes os batimentos cardíacos e muito intenso o frio no estômago. Há ainda os casos daqueles que foram vítimas dos espiões e ainda os que apenas ouviram essas peripécias pela vizinhança.
Por outro lado, sempre houveram as descuidadas ou as maliciosas, fazendo-lhes conforme a vontade e ao direito de se trocarem ou se despirem sem vergonhas e como quizessem dentro de seus próprios lares. Mas no ato de Aline há o que nem sequer o menino espião foi capaz de se dar conta, ou talvez tenha percebido perifericamente, sem desperdiçar detalhadas atenções com coisas fora do primeiro plano, o qual sabemos muito bem qual é. Sabemos mesmo que é um tanto quanto comum pararmos por alguns segundos numa mesma posição, como que abdusidos por algo que parece totalmente fora de um dado encontro, de um dado momento, porém mesmo sem pesquisas de campo, arriscamo-nos concluir que esses momentos de congelamento duram apenas alguns segundos, dificilmente chegando a completar sessenta deles. Entretanto, não nos custa repetir que a moça permanecera numa mesma posição, sem qualquer movimento visível, por longos minutos. O que de muito contém este detalhe não se sabe, embora possam estar curiosos alguns. Esperamos que no desenrolar dos acontecimentos vindouros se possa arejar a dúvida, mesmo porque, responde-la simplesmente, seria demasiada arrogância.
Ali em frente a janela, espreitando por entre a persiana, Rodolfo percebe algumas sombras também estáticas, mas nada, nada é capaz de lhe roubar o foco até o momento de seu ápice e consequente rápido declive. A menina segue seu ritual e já com seu baby doll, fecha a janela, momento em que também Rodolfo se recolhe e vai para cama, assim como sua deusa vizinha, crendo ele, com sua fé tortuosa, mas paradoxalmente como um bom fiel, que sua divindade não o olha o suficiente, quem sabe até chegando a tal ponto, que disparate, de desconhecer sua existência.
Amanhece o dia e a primeira atitude pensada do rapaz é a de abrir a persiana e após ela a janela, e se pôr a olhar um pouco mais despreocupadamente o quarto de Aline, cujas janelas abertas mostram sua ausência, como já previa Rodolfo. De férias, o bom aluno decide ver um filme, daqueles bem antigos e ainda em vídeo cassete, atitude “retrô” ocasionada por não o ter encontrado em dvd. Sentado na sala, desfrutando as frutas do café da manhã, pausa e despausa a película por inúmeras vezes, volta cenas, as revê em câmera lenta. Ali é o dono do tempo, o deus das vidas que desfilam sem lhes saber o que o futuro as reserva. Ele, ao contrário, já o sabe. Vê o tempo não como os personagens o vêem, passado, presente, futuro, uns após outros, mas sim como num plano eterno cujo o desenrolar é uma imagem apenas, cíclica e longa. Em sua poltrona confortável, esparramado entre almofadas de pano frio, viaja para algo maior ao ver em câmera lenta uma cena. “Será que o tempo da gente, da vida real, não é como o do filme? Mesmo que não haja alguém para vê-la, a imagem não é mais aberta e arredondada que uma linha reta, como imaginamos?” Dali ao segundo seguinte é um espanto! Saltando do sofá e atirando involuntariamente por todos os lados as almofadas de pano frio, ele pensa audaciosamente se o tempo da vida real não é espaçado tal qual num filme. Pois sim, onde nossos olhos enxergam uma continuidade por entre um acontecimento e outro, como que costurados, não seriam eles limitados e um tanto lentos para perceberem os espaços vazios entre um instante e outro. E se, naquele momento de espião, onde Aline se detém por um tempo longo demais e as sombras não se movem, não estivera ele justamente num dos buracos do tempo real?


(CONTINUA...)

terça-feira, 29 de novembro de 2011

NOS BURACOS DO TEMPO - parte 1

O tempo avança e com tamanha simplicidade faz correr os fatos uns após outros, concatenados estes, rumando o minuto seguinte. O silêncio de seu quarto parece suspenso do resto do mundo, distante e diferente da programação muda que segue na televisão que separa o breu do quarto de Rodolfo.  Acabam as notícias tristes, emendam-se os humorísticos e logo a seguir vêm os comentários do futebol com os gols da rodada e mais uns “quem sabe?” de comentários e especulações.
Já faz quase duas horas que o garoto foi para a cama, dentre as quais uns cinquenta minutos que sua mãe se convencera que ele já dorme e mais uns trinta que dormira ela mesma. Fora isso, há quinze minutos, percebera Rodolfo que a semana é quase igual à passada. Ele aguarda a chegada de sua vizinha, abençoadamente desanteciosa, que costuma chegar tarde da faculdade, sedenta por um banho que lave a canseira do dia, talvez apenas menos ávida que Rodolfo, que por vezes tem seus dias salvos por esses banhos de Betsabá.
De sua janela, estrategicamente dissimulada com sua persiana quase fechada por inteiro, afora por uma fresta na medida do globo ocular, não é possível ver o que se passa no banheiro de Aline – a vizinha –, mais precisamente embaixo do chuveiro. Ele espera pacientemente o tempo que leva o banho, somado a uns quantos minutos em que não sabe o que se passa, embora pense que seja o tempo de esfoliantes ou loções, esquecendo-se que a jovem da frente tem também suas necessidades fisiológicas por lá, as quais não detalharemos aqui por ausência demasiada de conveniência, imaginando também que isso interessaria ainda menos a um menino em plena puberdade. Nem todas as verdades merecem ser ditas, melhor seria imaginar outras ilusões, tal qual um menino de quinze anos.
O ciclo se repete como o próprio Rodolfo reparara. Ela entra em seu quarto e tranca a porta, pouco se importando com seu espaço de janela aberta, que é pouco, seja dito, mas que a tudo não esconde. Acende a luz do banheiro, vigiada por Rodolfo que, de cá, percebe pelo basculante a claridade se espalhar. Desliga sua televisão, sabendo bem, apesar da tenra idade, que o triunfo daquele que vigia está também em se converter em invisível. Ela retorna rapidamente ao quarto, já sem a blusa, ainda com sua saia longa e seu sutiã que a cobre. Apaga a luz do quarto e retorna ao banheiro, mais precisamente sua suíte. Ele percebe, após alguns instantes, uma breve queda de energia pela luz que se enfraquece e que dura o tempo em que se da o banho, pelo menos são as conclusões do menino, somado ao vidro embaçado rapidamente e, para constar, não é preciso ser tão inteligente para saber que ele não estava errado.
Aproxima-se o momento mais aguardado do dia. Rodolfo o desfruta lentamente, já tem alguma experiência na cena, como quando desembrulhava seus presentes de criança, calmamente, na certeza de uma alegria próxima. Ao retornar ao quarto, aparece mais próxima a sua própria janela, lugar onde talvez esteja sua cômoda onde guarda sua camisola. Ele a vê da cintura para cima, nunca soube se estaria nua dali para baixo. Os seios completamente desnudos o hipnotizam, formando uma paisagem com seus cabelos curtos e bagunçados, poucos centímetros acima dos ombros. Ali ela fica, meio de lado, meio de frente, com os seios à mostra num ângulo de quarenta e cinco graus. Está completamente estática e assim permanece alguns longos minutos.


(CONTINUA...)

domingo, 6 de novembro de 2011

UMA LOUCURA AVULSA


Lá vai ele novamente com seus pés calçados, ainda que levemente enlameados por conta das chuvas dos últimos dias. Fechou o portão sem me perguntar se era meu intento acompanhá-lo. Já não sei se me ignora de fato ou se a indiferença já o lançou a outras modas. O que em mim arde e me sufoca é seu silencio incisivo. Logo ele que sempre falou tão alto; logo nós que sempre fizemos tanto barulho juntos. 
Naqueles tempos havia prantos, sofrimentos, melancolias. Porém, hoje a mediocridade lhe sobra e seus sorrisos não passam de cumprimentos e convenções. Quase lhe bato nos ombros, mas não posso mais tocá-lo. Quero levitar a cama e deixá-lo cair do alto, mas não tenho mais forças. Sigo sozinho, com ele a frente, bato o pé, o único que me resta, pois o direito já me desapareceu há umas tantas semanas. A dor de não ser real é a que me visita; não tenho sangue, nem nunca tive. Não sou um zumbi, não me confunda. Tinha apenas com ele, mas não ardia.
Ele segue a rua anoitecida, deserta  já disse que chove? Pouco. Seu cabelo bem ornamentado ganha um tom orvalhado das gotas que não escorrem e teimam em não se diluírem por entre os fios negros. Sua roupa simetricamente sóbria e seu cheiro de banho recente quase o tornam outro. Sua sacola preta nunca mais carregou os sonhos chamados impossíveis que eu lhe dava para juntos subverte-los.  Guardava-os tão cuidadosamente. Vivia-os tão irresponsavelmente. Ele e eu, pela selva, pelos ares. Juntos de tantos outros. Às vezes outros demais. Os agentes, os teletransportados, os alienígenas, as escaladas à Torre Eiffel, os cochilos nas pirâmides do Egito. Deitara ao lixo, tempos desses, uns quantos pedaços de outro planeta que descobrimos numa viagem. Agora, na sacola preta de plástico, seguem apenas alguns filmes de bombas e explosões, dessas imagens fantásticas que nos fazem ver passivamente, sentados ao sofá, e que devolverá a locadora.
Ponho-me do outro lado da rua, mas seu caminhar é reto e estreito, de modo que seu olhar não lança luz sobre minhas piruetas. Passo em sua frente e sequer uma trombada se faz possível. Colocar-me-ia a voltar até sua casa e pôr fogo em tudo. Queimaria sua identidade. Mudaria os números dela. Abriria a tampa do vaso sanitário e poria abaixo toda aquela sanidade encapsulada e comprimida. Esfregá-los-ia até ao pó cano adentro com a descarga. Nada disso posso. Sou como um anjo da guarda que circunda e rodeia um homem, embora proteção não seja meu ofício. Posso estar apenas onde ele está. Existir, quando muito, apenas em ele me permitir. Pensando bem, parece que sou mesmo um zumbi, embora pareça não lhe fazer qualquer zumbido. Sou uma senhorinha buscando ganhar a vida com o corpo em plena Hollywood. Não o seduzo mais.
Não me vê. Não me sente o cheiro. Não exalo fragrância, mas há um cheiro. Agora se refere a mim como “delírio”, mas não suporto meu novo nome. “Não o tenho mais”, diz a quem se preocupa. Preferia “Raul”, pois assim me apresentei e assim me aceitou de pronto. Fiz de tudo um tanto e já passou do ponto de uma birra de imaginação mimada. Malabarismos com seus eletrodomésticos, levitação em frente à TV, meu preferido, diga-se de passagem. Mostrei o rosto em fumaça de café e fiz castelos animados de batatas-palha. Coube até em bolso de camisa para não ser abandonado.
Perdi forças sem estar velho. Quem me visse, caso fosse possível alguém ver a imaginação de outrem, olha que desconfio que fui motivo de risos para algumas crianças e até adultos, orgulho-me disso, claro fique, embora pareça invasão de privacidade, ou seria invasão de insanidade alheia, ainda que no fundo, no fundo, sejamos de quem olhar primeiro, ou até por último ora, o importante é sobreviver, enfim, não me dariam mais que 30 anos. Desculpem, ando demasiado fugidio neste parágrafo. Tenho a mesma idade desde sempre. Idade nenhuma. Sou corpo sem pele.
Até suicídio simulei, com ares de um suspense assustador de Hitchcock em alguns, noutras com as cores vermelhas da brutalidade visceral de Tarantino. Algumas vezes morri. Viu-me raras vezes em tudo. Nada além de sombras, quando muito retumbâncias. Era feliz e não sabia; vivia ainda. A última vez de que tive notícias de seu olhar foi ao atravessar uma densa avenida. Seus olhos brilharam, arrepiou-se a pele do coitado, não mais que cinco míseros e incontáveis segundos. Esboçou imediatamente um movimento com seu braço direito, o mais próximo a mim. Seus joelhos levemente se inclinaram como quem anuncia um desejo de correr, de sair rapidamente de um ponto a outro. Queria me salvar. Zangou-se naquele dia. Após conseguir travar seu próprio corpo da loucura de arriscar-se pelo seu “delírio – reitero que odeio o novo nome – franziu a testa, cerrou os olhos e seguiu a vida dando de ombros. Talvez pareça um exagero de minha parte, fazendo de um pouco muito. Imaginação? Não me peça para ser racional, já me basta aquele do qual falo.   
Está bem. Todos devem aceitar seu fim. Quem sabe seja melhor me extinguir num mundo onde não há espaços para uma imaginação ganhar a cena. Mortos por pílulas. Verdadeiro genocídio difundido por doutores. O maior crime do colarinho branco dos tempos. Restam-me os sonhos. Não me agrada lá, onde somos todos iguais e podemos quase tudo. Prefiro aqui. Em me pôr a caminhar por territórios rudes e quebrar-lhe os chãos feitos de concreto, nos lugares que não me são os de costume, os de longe de minha terra. Sou um nômade, oras.
Deito ao lado de sua cama em fins de noite e grito que não irei desistir. Minha voz inexiste. Bato palmas. Melhor seria ele desistir de me ausentar ou investir ainda mais pesado em seus remédios para que, assim, logo eu suma e nem mesmo em lembranças retorne. Ele quase dorme. No quarto escuro, vendo seu rosto sombreado, desencanta no canto de sua boca um sorriso. Só posso concluir que deseja me ensandecer. Estou fatigado, devo admitir.
Percebo que minha narrativa tomou o tom duma conversa. Isso, com você leitor. Falo eu, imaginas tu. Já começas a me dar vida. Tornastes-me real. Muito prazer! Como chamas?

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A Vida dos Monumentos - final


Lá estava do outro lado da rua, o número 53, muro baixo e chapiscado, onde a cadeira de seu velho amigo velho já não estaria. Foi dali, assustado, que vira seu amigo sair pela última vez, sedado, levemente acordado, quase sonâmbulo, com um resquício de transe em seu olhar, como que suplicando ajuda, como que clamando ser acreditado. Muitas vezes é o que resta aos nossos velhos, bem o sabe senhor Esteves, pedir crédito para existir. "Tarde demais", culpava-se, "isso não se poderá mudar". As lembranças são dolorosas e essas a idade não faz esquecer. Recorda o dia em que abrira o jornal e, estupefato, lera a notícia de que, numa cidade vizinha, onde nascera seu velho amigo velho, uma estátua fora erguida com a legenda "HERÓI DE GUERRA", entre outras homenagens. "Logo ele, tão covarde", ria-se o senhor Esteves, "ele que odiava a guerra; tudo por ser o primeiro", concluía Esteves, crendo que o amigo fora o primeiro a desvendar a barbárie.

Mas caso o senhor Esteves dali não saísse logo, tarde também seria para ele, pois o relógio permanece a circular, esse é o regime de Cronos. Seu velho amigo velho nada havia feito de relevante, da guerra muito mal participou, recusou-se a atirar, recusou-se a fugir, recusou-se a ajudar. Depois de morto tornara-se o um senhor da guerra. Já o senhor Esteves é um grande poeta, mesmo que há uns quantos tempos não produza. Ele que se tornou agora um engodo para a economia, um atraso para o progresso, um desvio para o axioma do "novo". Caindo em si, do pouco que lhe resta, vai à direção de sua casa por um caminho diferente, dadas  as circunstâncias, nada mal. Ainda da esquina pode avistar ao longe, escorando-se junto ao poste como um detetive de um filme "meia-boca", porque convenhamos, Sherlock seria demasiada ingenuidade pelo que se vê. Percebera com sua vista cansada que o perigo ainda não aperta tanto. Seguira rezando, um pouco involuntariamente, ele que em divindades jamais acreditou.

Adentrando a pensão lhe faltou à coragem em encarar a senhora dona do lugar, que da cozinha já anunciava o cheiro de queimado. Entretanto, as narinas que mal respiram não se dão conta dos odores que lhe visitam, isto é, o senhor Esteves subiu diretamente a seu quarto. Entrou em seus aposentos já tentando trancar a porta para que ninguém se aproximasse, mas as chaves se escondiam bem, maquiavelicamente espreitando e esperando o desfecho fatal, rindo-se silenciosamente com requintes de crueldade. Já indiferente à porta, partira ávido atrás de seus comprovantes de existência. Picotou-os todos, pelo menos os que encontrara, colocando todos os fragmentos numa sacola plástica de mercado, sua melhor mala e quem sabe o melhor disfarce. Dali, suando, escutara algo que parecia um automóvel a estacionar, uma ambulância, como viria a conferir pela janela. Um triste enjôo nascera entre as entranhas, escalando todo o caminho por onde só se deveria descer. Os vômitos lhe saíam fracos; o senhor Esteves escorava-se nas paredes buscando a porta que lhe tiraria dali, a porta que lhe abriria um novo caminho de fuga, que lhe permitiria outro lugar para se estar e aquele maldito lugar, outrora um lar, enfim abandonar. É trágico como um lugar em poucos minutos, outras vezes alguns dias, algumas declarações, pensamentos, com muito pouco um lugar se transfigura completamente, neste caso, para o pior.

Quem lhe amparou pelos braços enquanto desfalecia fora um dos enfermeiros. Aterrorizado e perdendo os sentidos, o senhor Esteves não pôde sequer xingar seu algoz. Por um lado se acalenta, é o braço esquerdo, enquanto que, por outro lado, se afugenta, é o braço direito. A injeção tem efeito instantâneo. Dali até seu destino, esse sim um nome bem a calhar, pois como tal não se escolhe, suas últimas memórias seriam estilhaçadas tal qual os documentos rasgados, mais fragmentadas que de costume. Numa das poucas imagens que lhe sobrara, já dentro da suposta ambulância, vira ao lado de fora a jovem jornalista, neta de seu velho amigo velho, com a cara de pesar, com a cara do dever cumprido, tudo em apenas um rosto. Apagou novamente, apagou derradeiramente. Suas lembranças agora são nossas. Nem mesmo lhe restou tempo para ver sua sedação total, seu desfeche, sua bancarrota. Não veria também que sua pele seria arrancada antes mesmo do falecimento oficial. Banhado em cobre, corrigidos os contornos antes da secagem final. Já não batia seu coração quando foi tornado estátua. Não veria as homenagens e nem as honras em praça pública. Não veria também que a jovem jornalista não iria à inauguração do monumento no centro da cidade.

O que também o senhor Esteves não vira em sua última troca de olhares com a moça, fora seu semblante desconfiado, talvez por honra de sangue, talvez por veia jornalística, provavelmente pelos dois. Não vira também o que aconteceria com a investigação que a jovem conduziria, clandestinamente, e os anúncios que faria - como na polêmica manchete "O HERÓI QUE NÃO SUPORTAVA A GUERRA" -, mais todo o material reunido para desmascarar a farsa do conselho da cidade. De certo, o senhor Esteves também não ouviria o som do telefonema que sobressaltou a jovem, no meio da madrugada, com a voz que lhe dissera o que a deixaria como num pesadelo que se inicia depois de terminar o sono

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A Vida dos Monumentos - parte 1

O céu aberto da manhã de mais um dia, dos quais chamamos úteis, ainda que não se saiba exatamente para quem, clareia a normalidade dos andamentos dos movimentos quase reeditados, os mesmos de ontem, semelhantes aos de anteontem, provavelmente um prenúncio de amanhã. Em mais um dia aquecido pelo sol incendiado, os corpos caminham tranquilamente, despreocupados e bem distribuídos na geografia projetada da cidade. Apesar da inexistência das nuvens, a temperatura não é elevada e o ar que entra não chega a fazer escorrer o suor. Porém, para todo esquema bem desenhado existe um rabisco possível, uma discrepância real. Algo que desdenha do todo, mas cuida para não ser apagado com uma borracha. O senhor Esteves corre o quanto pode. O melhor seria, ainda, dizer que se apressa, aflito, inimigo ele mesmo declarado da perfeição.

Sem saber por onde começar, mal sabendo que ninguém seria capaz, talvez não venham a saber que de tudo que aparece seu ponto de origem nunca se apresenta, ainda que se diga "eureka", traga-se alívio e ilusão, é acalentado pela jornalista que resolvera recebê-lo sem hora marcada. Lembrara de seu avô, a pouco falecido, a quem pouco visitava quando vivo. O trabalho não era pouco e o tempo, desconfiamos, está mesmo quase extinto. Movida assim, digamos, por motivos pessoais, recebe o ofegante senhor Esteves. "Beba uma água, senhor Esteves; acalme-se antes de falar". Ele consente e empurra goela abaixo aquela água pesada, pois apesar da garganta seca, o que o levou a beber foi puramente um sentido de estratégia, para evitar que saísse da bica da jovem o velho chavão de que os velhos são um tanto quanto teimosos, efeito da idade, diriam. Conquistaria assim, a atenção da moça e uma pré-credibilidade a seu infame discurso.terminadas as conversações, percebeu que não comovera a jornalista, que pedia que pensasse melhor , tentando convencê-lo do quão absurda era sua ideia, mas eufemisticamente falou, afinal, ela ainda respeitava os mais velhos. Ao fechar a porte para aquele senhor, pensou no que aconteceria se aquela notícia se tornasse publicada, em como reagiria aquela sociedade em ler que as estátuas da cidade eram literalmente feitas dos próprios modelos, "Homens estatualizados vivos!", sem contar a necessidade de inventar a palavra. Dali a pouco pegaria o telefone. Era hora de contatar; a quem, não se sabe. 

O senhor Esteves saíra do prédio desnorteado, desoesteado, deslesteado, dessulado. Uma ligeira vertigem o tomara de assalto, levando consigo as variadas cores, algumas delas, e escurecendo-lhe as vistas em plena luz da tarde. Passara o horário do almoço e nem mesmo o café da manhã, sua sagrada refeição, havia degustado. Pensou em retornar a sua casa, a pensão onde vivia e ultimamente sobrevive. (Todavia), o alarde criado nas últimas semanas por seu desatinado desespero levou o tal lugar um estado de alerta e aumentando ainda mais seu temor por um perigo eminente.

Após um pequeno desjejum, pois refeição não se poderia chamar, decidiu ir até seus pertences , em especial os seus documentos, a fim de extinguir-lhes todos para que dele não se tenha registro oficial. Não se estatualizaria um "Zé Ninguém" e, por outro lado, não se procura um foragido que não existe. A caminho de uma cidade outra, ao tempo de uma viagem sem rumo, pensaria numa nova identidade, nosso grande vício. Ora, mas não é exatamente isso o que fazem os conselheiros da cidade? Não são eles quem decide quem deve ou não ser transformado em estátua, em monumento, em patrimônio histórico e público, enquanto escolhem o que deve ser lembrado, o que vai para lápide, o que se tornará memória e o que se tornará esquecimento. Para este senhor as ideias não se aclaram, a fugacidade, a incerteza, a idade que nem mesmo a si já lhe confia. Na trama das teorias conspiratórias, passara pela entrada de sua rua e não se tinha apercebido, mas felizmente perdido por inteiro não estava. Ali, lembrava ainda do lugar o qual o acaso, ou o descompasso o levara.

------------------------------------------------------------------------------------------------ Continua...

             

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Os Pretéritos de um Futuro Verde-amarelo


Estavam quase, como que atônitos, ligeiramente aflitos, inteiramente desesperados. Isto é, no sentido mais forte do termo, não esperavam por tudo aquilo, nem mesmo pela notícia e desde agora, doravante não esperam mais qualquer boa nova.

Ora, onde estão todos vocês? Uns quantos movimentos repentinos e já não mais estão aqui. Tudo que se viu antes se foi. Sem rebates, silenciosamente. Pareceria um alerta antibélico se nós estivéssemos em guerra. Não há chuvas destrutivas nesta época do ano. Era para saírem, com o pouco do corpo, com a miséria da geladeira, com a vergonha da covardia. Não é uma desocupação, minha senhora. Tudo soa cinicamente como deve ser. Vocês simplesmente devem sair. Caminhem pelas beiradas, não façam alardes e nem mesmo dêem entrevistas. Tudo será resolvido, ainda que nunca o saibam; a nação agradece. O progresso já não vem a cavalo, tudo é muito acelerado. A luz é o limite ou será. O sossego é uma encruzilhada, o avanço segue a abrir avenidas onde houvera lares e aconchego.

Veja só que bela casa! Veja só que beleza este jardim. Foram-se os tempos. Visitem-nos com suas máscaras e não atravessem a rua fora da passarela. Olhem ao longe, quando muito lá por cima. Já não há portas para bater, as janelas não revelarão mais qualquer paisagem. Cuidado com os futuros, rapaz.

Ali, onde estavam, longe, é difícil tornar a sentir a vizinhança. A herança não é muita. Não seremos convidados para as festividades. Torçam pelo Brasil, todos vocês, todos nós. O governo não fala por nós. Fostes pegar o último girassol e ele já não olhava para o sol? Está distante, como a observar a descida de outra plataforma, ali por cima, sobre a pilha de paralelepípedos. Quem as largou aqui, não queremos namoro. Está como que entregue a má sorte, sob a pilha, já concretizada. Despediu-se do sol, o grande curioso que quase a tudo espreita a querer ver, que se levanta em meio à poeira dos passados que ficam para trás.

Em molduras as crianças não correm pelos corredores, não quebram jarros com bolas; estão ali para sempre ficarem. É o que se pode.
Façam silêncio, por favor. Não necessitam se incomodar com a porta. Não teremos os vizinhos. Você está cansado. Aperte minha mão de luva empoeirada, levante o capacete e sorria para o ponto vermelho. Pegue o cheque na saída. Foi esse o acerto final. Acerto certeiro. Via de mão única; inaugurada! Os holofotes criam o espetáculo. Estejamos longe, estou farto de modernidades. Meu bem, a civilização é uma barbárie. 

Enquanto isso ligue a tevê. Vão começar os jogos.  

sábado, 20 de agosto de 2011

Viagem ao terceiro mundo

Iremos visitar a marca das barbáries. É um reduto dos povos da recusa, nos dizia o homem. Tomaremos o devido cuidado. Não podemos encará-los abertamente, pois não sabemos o que se pode desencadear. Mais parece uma cidade inteira, pelo seu tamanho. O cheiro fétido estende-se ao longe, quase se pode vê-lo ainda do outro lado a ressoar em nossas narinas civilizadas. As construções de tijolos expostos têm apenas algumas hospedarias pintadas de azul marinho, outras amarelo manga, outras laranjas, num tom curiosamente semelhante ao dos tijolos expostos. O homem diz fazer parte da organização, como um mosaico, rindo do que disse. Assim também não nos perderíamos, concluímos aliviados com a segura certeza.
Lá embaixo, na selva, estão ao relento. É cedo, mas muitos já saíram para retornarem apenas ao final do dia com alguma esperança e, talvez, uma cara amarrada. Não se pôde ver. À noite não me parece tão seguro um passeio como estes. Embora esteja tudo em franco processo civilizatório, como li numa das propagandas.  Parece que vai haver o que chamam “roda de samba”, típico do Brasil, como bem sabemos nós desde o outro lado do oceano. Mas quando os encontramos em alguns cantos da cidade, ao ar livre, tem sempre o semblante fechado de miséria, como se a culpa nos coubesse no armário, como se estampasse numa blusa, como a dizerem-nos que não somos bem-vindos. Aos pequenos se consegue arrancar um sorriso, bastam alguns trocados, ou mesmo um biscoito.
É possível vê-los pelas janelas, pelas frestas das portas a se alimentarem, higienizarem-se a sua maneira. Por vezes, dá-nos a impressão de que as casas têm rodízios, pois é como se trocassem o tempo inteiro em alguns lugares mais que outros. Talvez, apenas aquelas estivessem nesse sistema de entrar e sair a quem queira. Não há muita clareza para se entender o que passa. O teleférico á alto, passa ao longe, mas perto o suficiente para se usufruir esse curioso passeio com o que chega às vistas. Deixam-nos entrar também, em quantidades pequenas, é claro, sem comprometer a integridade da viagem.
Final de passeio com o saldo positivo. Tem mais duas semanas de praias. Já foram Pão de Açúcar, Cristo Redentor, Teleférico no Complexo, o último riscado. Ninguém morreu ou sequer se feriu. Voltarei ano que vem e trarei minha família, e claro, alguns brinquedos para doação. Não se pode fechar os olhos para miséria, é necessário ajudarmos. Com o dinheiro que se tem vê-se muito. Não tudo. Definitivamente, volto ano que vem. 

terça-feira, 28 de junho de 2011

O carpinteiro e a canga verde-limão

“Amanha será um bom dia para ir à praia”, foi o que pensei ontem. Não estava de todo equivocado. A manhã é ensolarada, porém sem demasia. Se for verdade que existe uma medida certa para as coisas, o calor encontrara seu apogeu. A temperatura não é elevada e venta fresco, dando a ilusão de um refrigerador tamanho celestial perpassando toda a região beira-mar e, devo dizer, refrescando até mesmo a areia dourada, reluzente como um sol que nasce debaixo, de maneira tal que me martirizo por haver esquecido os óculos escuros. Praia vazia, apenas alguns gatos pingados, se é que isso da em praia. Soaria mais verídico dizer “cães pingados”, mas estes não pingam, estão mais para algo derramado.  Não estamos no verão, é bom lembrar, tampouco é final de semana. Terça-feira é dia de labuta para quem não pode escolher as folgas. Nem todos ganham bem a vida como artesãos. Isso se ainda os há, caso não seja eu o último.
A manhã segue normal e, enquanto saboreio uma água de coco, sequer transpiro. Tão atípico que, ao dar por mim, vejo uma esvoaçante canga verde-limão de uma sereia que, ao que se nota, trocou por definitivo as esporádicas subidas à superfície marítima e as investidas aos indefesos marinheiros, pelos desfiles nas extensas areias de Ipanema e a sedução aos mortais cariocas que a possam ver. Boa sorte a minha. Terminada a tarefa de estender a canga, sedutoramente, diga-se de passagem, levanta-se agora para ajeitar o biquíni tomara-que-caia, a parte dos seios cobertos por um lilás fechado, com alguns pequenos detalhes estampados aos quais não pude identificar sequer a cor, quanto mais o que era, tamanho meu introspectivo desatino. A parte inferior era lisa, também fechada, desfilando em tom cinza, talvez grafite, mas isso é o que menos importa na paisagem, embora contraste maravilhosamente com sua pele branca, daquelas que não azedam.
Assisto a tudo sentado, no tempo em que minha retina desistiu de enviar ao cérebro os estímulos luminosos, que por isso da areia já não me incomodam. Seu tom alvo forma algo como uma raiz que sustenta aquelas pernas, que em sua textura jovem e lisa, rivaliza com a areia velha e pisada. Pernas, cintura fina, seios escondidos como um tesouro a seduzir o pirata. Quem me dera ter um tapa-olho. Seu colo desnudo, graças a seus loiros cabelos em semi-coque, deixando sua nuca, a qual não vejo, mas posso imaginar, inteiramente livre. Alguns fios rebelam-se, teimam em levitar ao ritmo do vento. Nada que incomode uma deusa. Seus brincos de argolas grandes a deixam ainda mais cinematográfica. Começo a suar.
Olha-me! Qual despeito o meu?! Em verdade, olha apenas em minha direção enquanto, agachada, apanha em sua bolsa o protetor solar. Olha seguidamente, interrompendo-se brevemente em alguns instantes. Está de óculos escuros. Fosse eu um tipo praiano juraria que é para mim. Ela ergue com suas delicadas mãos o protetor, num gesto em que simboliza o oferecimento de seu corpo ao herdeiro, como um rei Artur que irá arrancar a espada pela força que o torna “o escolhido” em meio a muitos. Segue com sua mão em minha direção a ostentar o recipiente. Será um convite? Estou desfalecendo... Retomo rapidamente a água de coco e espreito sem barricadas. Ainda que de óculos escuros, estou certo de que é meu o seu desejo. Meu coração deve dar-se a ver de lá, de tanto que insiste em bater estrondosamente. Bastar-me-iam a insensatez e alguns ligeiros passos e estaria eu a puxar conversa com um “bom dia”, “qual a sua graça?” ou um ousado “necessita ajuda?”. Estaria a sua frente, a vê-la se deitar, sua pele sedosa abrigando minhas mãos espalmadas a talhar meu desejo em suas costas atrevidas. Como faço arte com madeira, de certo que ela não esqueceria minhas talentosas mãos. Ombros, braços, pernas, “com sua autorização”, riríamos os dois. Contar-lhe-ia meu ofício; ela se lembraria de um avô carpinteiro que jamais existiu. Seria o primeiro de muitos encontros.
Ainda nem perguntei seu nome e dou por mim que na distância em que nos encontramos, ficaria eu a falar com os pombos. Deixo então de sonhar e levanto decidido a me aproximar quando por mim passa um rapaz alto, devidamente bronzeado, numa corrida atlética a qual me faltaria o ar. Ele chega, ela sorri. Eles brincam e se beijam rapidamente, com aquele beijo de confiança que somente entre namorados se procede. O privilégio é dele; rei Artur. E eu aqui, sem encontrar assento na távola redonda.   Fosse antes uma sereia e me consolaria o fim daquele marinheiro. Poderia ser eu o próximo, morreria feliz.
Invejo cada detalhe desta cena. É incrível como uma mulher possa não saber a desavença que um protetor traz para a vida de um homem. Ela não olhara para mim. A consciência é uma perdição dolorosa. Quem foi que disse o contrário? De certo alguém que não a viu daqui, de onde a vejo. De onde a vejo parece uma atriz pela beleza de seu rosto, cada parte compõe sem medo uma perfeita sintonia com as demais. Corpo de dançarina, desenhado, mas sem ares de academia. Cheia de assuntos, os quais eu não acompanharia; de praias pelo mundo afora, de festas, viagens. Se pudesse lhe contar a poesia das madeiras maciças, dos cálculos, das geometrias, da vida que dou aos troncos. Se visse meus telhados, portas, assoalhos, móveis. Aceitar-me-ia como o homem da casa que seria nossa. Todavia, agora penso que estive no ofício errado. Deveria estar a fazer pranchas. Estaria ao pé de seu ouvido, a sentir seu perfume vencer a maresia, ensinando-lhe os truques das ondas, “é possível andar sobre as águas, meu bem”.
Indo embora, passa por mim envolta em sua canga verde-limão, já sem os óculos e, como danou a fazer boa parte da manhã, olha-me. Agora sei, eram mesmo para mim aqueles olhos castanhos que acabo de conhecer e que ofuscam até mesmo o azul brilhante do mar, que ofuscam até mesmo o azul dourado do céu. Ela sorri de canto de boca ao passo que me fulmina, enquanto o rei Artur parece se ocupar de um aparelho celular. Um pouco mais tarde, ainda anestesiado, mergulho na esperança de curar a ressaca de minha alma embebida de saudade. Ao retornar, encontro a canga verde-limão estendida. Procuro-a por toda parte. Não a encontro. Talhei-a eu, numa paixão inventada de artesão?


quinta-feira, 26 de maio de 2011

Postal

Dia desses enquanto lia “O Vendedor de Passados”, de José Eduardo Agualusa, algo na leitura me chamou atenção. Claro que não somente isso me afetou, porém em alguns momentos alguns acontecimentos, mais do que outros, nos tiram do lugar. É como se saíssemos do espaço geográfico em que habitamos para nos aventurar em outra atmosfera. Creio que seja mais atmosfera do que espaço. Coisas que não havíamos pensado em meio a tantas já pensadas, algumas até demasiadamente, outras mais furtivamente. A primeira coisa que gostaria de compartilhar nos remete a segunda parte dos pensamentos, os furtivos, aqueles que pensamos de passagem, passam por nós mais do que nós por eles e deixam apenas rastros, cultivados ou não.

Vejam: “A felicidade é quase sempre uma irresponsabilidade. Somos felizes durante os breves instantes em que fechamos os olhos”. Esse foi o primeiro momento em que saí da leitura, por ela mesma assaltado, um tanto também pelo contexto da narrativa, pelo desenrolar do livro. Mas o que ficou, se assim se diz, foi – ou é – a citação acima. Os planos nos servem ao contentamento, já as surpresas, um pouco ao acaso, se as permitimos percorrerem nossos caminhos, participamos delas, ainda que por um breve instante. Fechar os olhos é não guiar, não dirigir, não trilhar. A felicidade não é um objetivo. Na verdade prefiro a palavra “alegria” a “felicidade”. A primeira traz a conotação do instante, da fugacidade e, assim, retira-nos do centro, da ilusão do controle; a segunda faz pensar em permanência, num ideal que, uma vez alcançado, estaria terminado, igual, cheio de méritos pessoais e enrijecido. A distinção é minha, não creio que seja a conotação que o autor deseje dar a ficção, tampouco me importe e etimologia das duas palavras.

O desejo, o primeiro de dois, é: “feche os olhos!”. Aproveite os momentos em que a vida não é generosa, não são todos, para alguns mais, para outros menos, são os mistérios e a insensatez da vida, não há lógica nisso, apenas ritmo. Mas quando a brisa lhe chamar pela pele, incline a cabeça ligeiramente para cima, permita ao vento brincar com seus cabelos, seus olhos verem a poeira levitar, os ouvidos ouvirem as ondas que jamais se cansam. Sinto o cheiro da chuva. Mas também o do café, do perfume, da gasolina, das gentes; veja o horizonte, sinta a velocidade nas estradas, viva a letra escrita, as imagens inventadas. Rejeite os manuais, inclusive este se assim lhes parecer. É a parte mais importante, fechar os olhos para eles.

Agora a segunda parte, ou melhor, o segundo desejo. Bem, tentarei levá-los até ele, que rematará o postal. Já sabemos e não haveria de ser diferente que, nada dura para sempre. Tudo que é matéria acaba e o que está entre ela e outra, finda também. Um dia, quem diria, até o sol cansará de aquecer, a grande estrela se fartará. As ondas não mais insistirão em bater, num dia em que não estaremos para ver e, muito possivelmente, ninguém estará. A vida passa e os anos também. Estamos em 2011, estaremos em 2059, estivemos em 1968. E passam. Mas, como tudo que passou nada é apenas alguma coisa. As coisas são, cada uma, muitas delas. Assim, o tempo não é somente os dias ou minutos na ditadura do Cronos, mas as experimentações, os acontecimentos, os instantes de alegria, os de tristeza. São além dos fatos e, não me refiro as ideias. Falo de vivências eternizadas, das saudades, do porvir. Falo sem saber.

E agora, mais um pensamento furtivo: seja feliz para sempre nos momentos em que fechar os olhos. “Somos felizes, verdadeiramente felizes, quando é para sempre...”, quando é para sempre? Talvez se for inteiro, quem sabe, seja para sempre... Portanto, o desejo é de que não percamos a criança dos sorrisos, pois seria um caminho de tristezas e, quando muito, de medíocres contentamentos. Encerro assim, compartilhando mais do que pactuando, pensando alto mais que postulando, escrevendo à deriva, ainda que com palavras emprestadas: “... mas só as crianças habitam esse tempo no qual todas as coisas duram para sempre”.

Lugar qualquer,  da/ta/vã.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O diário sem memória - final

Foi-se. Saiu já quase noite, sem rumo, precisava apenas sair, dirigir, acelerar. Passou ao outro lado da cidade, longe de casa, longe de conhecidos, longe das lembranças. Pelo menos era o que almejara, embora não seja difícil de imaginar que não passariam de ilusão, as lembranças recentes vieram sentadas sobre o banco do carona, desceram do carro e subiram junto dele ao quarto de hóspedes do hotel em que se hospedara; não o largaram, como se com ele estivessem algemadas. Seu consolo é saber que seu algoz não resiste à luz do dia, o esquecimento o levaria, bastaria apenas um bocado de concentração – ou seria a ausência completa dela – para que a memória se esvaísse.

Porém, diferentemente das noites em que Rubens sequer pode se lembrar, é o preço que se paga ao apagar as dores vividas, deixou seu quarto já em fins de noite e pôs-se a caminhar a pé pelas ruas da cidade. Algumas já dormiam em silêncio, outras resistiam às horas. Lá, avistara uma casa de festas, talvez uma boate, talvez um prostíbulo. Foi à porta e perguntou ao segurança do que se tratava o lugar. Para a alegria de Rubens o mesmo lhe garantiu a segunda suspeita. Rubens sorriu e subiu, era o momento de vingar a desavença, de aplainar o jugo desigual. Passou a semana longe de casa; sete dias no hotel, sete noites no puteiro, perdoem o mau jeito, mas por vezes, por pressa ou impaciência, necessitamos de clareza com as palavras. Durante este período, pouco falara com sua casa; escassas ligações, meias palavras, nenhum veredito. Pedidos de perdão não aceitos, clemência adiada.

Toda noite, antes de anotar suas tarefas em seu diário azul, onde escrevia antes de apagar-se a memória para de algum modo permanecer ligado em sua vida e a ela dar continuidade, encarava o diário vermelho como se este o desafiasse e, envergonhado por não encorajar-se a ler, procurou nos corpos das meretrizes o consolo, como se uma necessidade suprisse outra. Entretanto, soube Rubens muito bem aproveitar este confuso erro. Gozou todos os dias, com todas elas. Não é preciso detalhes, reclamam os leitores. Prometo não voltar a eles, mas este fica para que conste em seu histórico.

Ao sétimo dia não se permitiu o descanso, rejeitou a mediocridade e se pôs a folhear o livro proibido, ignorando o aviso da capa, “NÃO LEIA!”. Pela primeira vez Rubens se encontraria com seu passado, com seus monstros, ao menos, ainda que de forma inocente, era o que imaginara. Visitou, agora com sua leitura, dores moribundas. O que era morto reviveu. Os zumbis, esses mortos-vivos, também andam, talvez respirem, ainda que com dificuldade; sua existência é mais sofrida, pois suas vidas carregam as dores da morte. Paradoxo. Assim, igualmente o é com as memórias desenterradas. Lamentou pela memória triste e irritou-se consigo mesmo. Já não era a primeira vez que lera o diário vermelho. Chorou. Chorou hoje as dores de outros tempos. Choro duplo. Como uma onda seu passado inundou o momento levando embora a ilusão que permitiu a Rubens se pretender intocável.

Leu o que já havia lido. Seria um choro triplo? Uma dor ao cubo? Deu-se a ira, permitiu-a possuí-lo e arrasado, destruir o quarto. Deu-se ao silêncio, às retumbâncias dos tempos tornados um só, dos passados vividos e perspectivas futuras tornados instante. Percebera que apagar as dores e enterrar os mortos, ainda que não se visite o cemitério, não impossibilita os maus dias, nem mesmo voltando a apagá-los – o que parece temporário. Decide então apagar todos os seus dias, porém não todos de uma vez, logicamente; um após o outro, apenas isso, embora seja já incrivelmente muito. Uma rotina desfeita pela raiz pode ser um caminho mais eficiente, era o que imaginara. Ou apenas o que desejara. Num lapso de não se sabe o que, acende uma pequena fogueira e queima o diário vermelho e com ele os espectros assombrosos de seu passado. Rubens é agora o homem sem memória. Anota as tarefas no diário azul. Esquece e dorme.

Volta para casa e toma em seus braços sinceros a mulher que lhe espera.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O diário sem memória - o parêntese

Quando ainda garoto, Rubens demonstrava difícil domínio nessa relação tão dinâmica entre lembranças e esquecimento, sim, a primeira no plural por permanecerem vivas, a segunda, ao que parece, une-se a uma só coisa, o buraco negro da memória e se mostra singular, se é que o que se apaga ainda faz parte do campo da memória. Para além de todos os mistérios, se algo é dito esquecido, esquecido está até que se prove o contrário. Por favor, tentemos não pensar em recalques, vamos deixar o mimo que é um divã para lidar com o caso, para variar um pouco se não é pedir muito.

No início, às primeiras vistas, tudo parecia um problema de indisciplina. “Os dedos na tomada causaram uns muitos choques por dia”, lembraria a mãe. Por sinal, gostam lá as mães de algo mais do que lembrarem a infância de seus filhos; pobrezinhas, muitas vezes é o pouco que lhes resta. Com o tempo já acreditara que, talvez, esses incidentes tenham sido a verdadeira causa. Vemos o que podemos. Memória fraca, pelo visto, todos nós temos; uns mais e outros menos, mas veremos que o problema do menino vai além de um fator hereditário.

A mãe de Rubens sempre pareceu preocupada e de várias formas tentou ajeitar o garoto. Como na época ainda não circulavam leis que proibissem os ditos responsáveis de ensinarem à flor da pele como se deve portar na vida, eram variados os castigos. Não será preciso nos zangar, não se trata de uma lembrança violenta de uma mãe desnaturada para com seu próprio filho. Era mãe por natureza e família por natureza, e pelo menos desde alguns séculos isso é sinônimo de disciplinar os filhos e antes que seja tarde, como temem alguns. Portanto, fustigar com vara parece que há muito é função familiar, mas não somente isso, pobres crianças, ainda tem os puxões de orelha, as chineladas nas nádegas, o cinto, a palmada. Sem contar os castigos, as ameaças e coisas do tipo e que bem conhecemos, seja por um lado, seja por outro.

Passadas as tentativas fracassadas, como numa brilhante ideia que se acende, mas que na verdade é um processo longo que desemboca a qualquer hora, percebeu que o problema maior já não era a memória do menino, mas sua maneira de abordá-lo. Castigou-lhe com um diário. É que o menino esquecia muita coisa, perdendo por vezes seus compromissos, a entrada e a saída. O que a mãe temia ser uma sem-vergonhice, uma doença, um distúrbio, ou como se diria hoje, um transtorno mnêmico, era um dom, uma maldição. É que isso varia segundo o momento, convenhamos. Algo que se da pela imanência, palavra esquecida, mas nem por isso menos real. Uma façanha do desejo com a colaboração dos imbróglios fisiológicos que como máquina funcionara e ainda há de funcionar até os dias de hoje. Esses que não serão os de agora, teremos que aguardar um pouco mais.

Em algum dado momento, não se sabe exatamente quando nem como, Rubens tivera que lidar com dois diários. Ao que tudo indica são também ordens de sua atenciosa mãe, mas ao certo não importa, até porque não há aqui alguém com dotes de Procurador Geral, ou quando muito não está para isso. Então, um diário cuja capa é preta e se escreve de vermelho; outro diário de capa verde, onde se escreve em azul. Com o tempo e a idade, aprendeu Rubens a manejar seus diários, segredo que apenas sua mãe sabia. Aprendeu também a lapidar seu “talento”, esquecer ou não, o que nem mesmo sua mãe imaginaria.

Continua...

Bruno Costa

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O diário sem memória

Do lado de fora da casa é possível ouvir os gritos abafados e, talvez para os mais sensíveis, os quais porventura passeiam pela calçada numa caminhada de fim de tarde ou ocupando o lugar de simples transeuntes, seja possível até mesmo sentir a tensão que visita o casal. Do lado de dentro o que se vê parece o fim; um casamento tateando sua bancarrota. Certamente nada de novo, como alguns bem poderiam observar. Sim, devo concordar. Mas não nos apressemos porque a história não termina aqui e precisamos prosseguir. Letícia envolveu-se com outra pessoa, um rapaz mais jovem que seu marido, embora não nos convenham mais detalhes e, por não ter o consentimento do marido, como é o costume já há muito tempo no mundo, teme acabar sem ele. Algumas feministas poderiam dizer que também isso seria comum e nada problemático, mas não iremos, insisto, nos apressar nos julgamentos.

Rubens não flutua como seria necessário em casos como este, quando uma pessoa fica "sem chão" como popularmente dizemos. O chão é o lugar onde sabemos pisar. Porém, Rubens se encontra de pé, embora as pernas lhe tremam e não façam valer qualquer firmeza, o próximo passo talvez esteja mais para uma queda livre, se é que algo pode ser merecidamente chamado livre, quem sabe unicamente isso, uma queda, mereça esse complemento. Para onde poderia ir agora sem sua mulher de longas aventuras? Precipitam-se os que pensam que o desejo se dê pela falta. Não é por descaso ou mesmo talento atrofiado para as necessidades do casamento de Rubens que a levou ao lugar que ainda pouco foi. O acaso que nos ronda desconhece as normas morais e as quantidades socialmente autorizadas, se bem me entendem. Caso contrário, que fique claro, ainda que nos demoremos mais no assunto, que Letícia não buscou no outro jovem suprir suas carências afetivo-matrimoniais, tanto não foi que ainda está com o marido e sem planos de deixá-lo. O desejo que a tomou de assalto não lhe descreveu o adultério, nem tampouco lhe disse que apenas um homem lhe bastaria e que então voltasse ao seu marido já que muitos não encontram com quem se deitar, sendo que ela já o tem. Tivera? Não sabemos onde os desencontros irão levar o ilustre casal. Por vezes o desejo vem como uma catástrofe natural, que independentemente dos esforços contrários acontecem, embora os homens façam o favor de os precipitarem.

Vejamos o lado da suposta vítima. Embora o medo parecesse seu único sustento neste instante, já sabia como tudo incrivelmente acabaria. Assim, num misto de alívio e melancolia, como um só sentimento, um só afeto, mas por carecer de inventar palavras não se pode sentenciar mais adequadamente, ainda bem, pois seria demasiado desagradável se soubéssemos falar tudo, dar nome a tudo, sendo que tudo nunca será, pois o mais ainda está por existir, ficamos por ora com as duas palavras aparentemente avessas, numa só dose para dizer que o homem decidiu sair. Ficaria longe uma semana para que não ruísse seu plano, este que, acalentemo-nos, ainda não nos foi revelado, não criemos mais preocupações, já nos basta um casal perdido em toda essa situação. Antes de fechar a porta disse Rubens que voltaria a abri-la, mas apenas talvez, com tom de “quem sabe?”, apenas se lhe perdoasse a traição, foi assim que disse pois assim julgou, para recomeçarem do zero, como se isso lhes fosse possível. Muitas vezes se começa do 1, do 3 ou até do -1, ou mesmo do -0,5 por encarecimentos de detalhes, porém jamais se começa do zero, que é um estado que não nos compete saber. Em meio a tudo, Rubens nem mesmo lembrara que já não seria a primeira vez.

Continua...
 
Bruno Costa