sexta-feira, 26 de março de 2010

Moça bandida

Nasceu a tão esperada criança. De surpresa malograda, lá se foi a esperança de um macho que jamais viria. Menina linda, desde cedo despertava expectativas. Pouco depois e ainda cedo foi iniciada nos serviços de mulher, tornando-se moça. Encarnou desde então, dotes de uma amante, enlouquecendo e aquecendo seus conterrâneos. Amigos de escola, trabalhadores de oficina, desconhecidos, acamados, internados, vovôs enguiçados, as tiazinhas viúvas... foram muitos. Consolou viúvas, sorriu com viciados, inquietou os desquitados e também os casados; perdeu-se ainda com os errantes. Todos diziam que em toda a cidade nem meretriz houve com histórias semelhantes entre tantos lençóis. Era maldita na cidade, denunciava a fragilidade de famílias muito unidas, a inquietude das carolas, a carência das carochas, a impotência dos desterrados. Era motivo de chacota, de tapas e escarros, de pedras e porradas. Era ré dos crimes todos da cidade. Todo o inferno cabia em seu colo.
Certo dia um comandante, arrumado, letrado, ilustrado, armado e detentor de grande poderio militar, decidiu a velha história de Sodoma ressuscitar. Era tudo iniqüidade, hipocrisia, pilantragem, que a esta cidade lhe restara seu final. Todo mundo em polvorosa pranteava sua hora; nem seria necessária uma cova, pois o fogo deixaria apenas o fedor de enxofre. Todavia aquele temido homem tinha um calcanhar de Aquiles. Nem mesmo ele, do alto de seu coturno, resistiu à bela jovem. Desejou-a de imediato, em troca de uma trégua até pouco esvaída.
A cidade olhava a moça, implorando como quem pede perdão e, num coro fumegante lhe cantou em contrição. De vagabunda a redentora, ela jamais sonharia, ainda que com muita imaginação. Teria seu dia de rainha, tudo mudaria. Comovida e adornada pela vizinhança, contra seu desejo quase intolerante por linhos finos e barba demasiado feita, engoliu seco, depois engoliu um seco, um quente, e aceitou assim, a proposta indecorosa e obscena. Resistiu ao nojo e se entregou; o homem encharcado de suor a possuía com brutalidade. A cidade esperava e cochichava: “ela está acostumada”, “no fundo está realizada”. Mal se deu a alvorada e o homem se vestia, levando consigo a ameaça de bancarrota daquela cidade.
Respirando então, depois da noite sofrida, antes de estar de toda tranqüila, ainda lá dentro ouvia os ecos da cidade: “ela deve estar se achando”, “ela é uma atrevida”, “pensa que é uma deusa”, “nós não vamos nos curvar”, “nunca iremos perdoa-la”, ”um acerto não lhe susterá os pecados”. Sua paz já lhe escapava, porque é hora e seus vizinhos não demoram. Era novamente o mau e o fel daquela gente.


Bruno Costa

PS1: Texto inspirado na música "Geni e o Zepelim", de Chico Buarque.