quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O diário sem memória - o parêntese

Quando ainda garoto, Rubens demonstrava difícil domínio nessa relação tão dinâmica entre lembranças e esquecimento, sim, a primeira no plural por permanecerem vivas, a segunda, ao que parece, une-se a uma só coisa, o buraco negro da memória e se mostra singular, se é que o que se apaga ainda faz parte do campo da memória. Para além de todos os mistérios, se algo é dito esquecido, esquecido está até que se prove o contrário. Por favor, tentemos não pensar em recalques, vamos deixar o mimo que é um divã para lidar com o caso, para variar um pouco se não é pedir muito.

No início, às primeiras vistas, tudo parecia um problema de indisciplina. “Os dedos na tomada causaram uns muitos choques por dia”, lembraria a mãe. Por sinal, gostam lá as mães de algo mais do que lembrarem a infância de seus filhos; pobrezinhas, muitas vezes é o pouco que lhes resta. Com o tempo já acreditara que, talvez, esses incidentes tenham sido a verdadeira causa. Vemos o que podemos. Memória fraca, pelo visto, todos nós temos; uns mais e outros menos, mas veremos que o problema do menino vai além de um fator hereditário.

A mãe de Rubens sempre pareceu preocupada e de várias formas tentou ajeitar o garoto. Como na época ainda não circulavam leis que proibissem os ditos responsáveis de ensinarem à flor da pele como se deve portar na vida, eram variados os castigos. Não será preciso nos zangar, não se trata de uma lembrança violenta de uma mãe desnaturada para com seu próprio filho. Era mãe por natureza e família por natureza, e pelo menos desde alguns séculos isso é sinônimo de disciplinar os filhos e antes que seja tarde, como temem alguns. Portanto, fustigar com vara parece que há muito é função familiar, mas não somente isso, pobres crianças, ainda tem os puxões de orelha, as chineladas nas nádegas, o cinto, a palmada. Sem contar os castigos, as ameaças e coisas do tipo e que bem conhecemos, seja por um lado, seja por outro.

Passadas as tentativas fracassadas, como numa brilhante ideia que se acende, mas que na verdade é um processo longo que desemboca a qualquer hora, percebeu que o problema maior já não era a memória do menino, mas sua maneira de abordá-lo. Castigou-lhe com um diário. É que o menino esquecia muita coisa, perdendo por vezes seus compromissos, a entrada e a saída. O que a mãe temia ser uma sem-vergonhice, uma doença, um distúrbio, ou como se diria hoje, um transtorno mnêmico, era um dom, uma maldição. É que isso varia segundo o momento, convenhamos. Algo que se da pela imanência, palavra esquecida, mas nem por isso menos real. Uma façanha do desejo com a colaboração dos imbróglios fisiológicos que como máquina funcionara e ainda há de funcionar até os dias de hoje. Esses que não serão os de agora, teremos que aguardar um pouco mais.

Em algum dado momento, não se sabe exatamente quando nem como, Rubens tivera que lidar com dois diários. Ao que tudo indica são também ordens de sua atenciosa mãe, mas ao certo não importa, até porque não há aqui alguém com dotes de Procurador Geral, ou quando muito não está para isso. Então, um diário cuja capa é preta e se escreve de vermelho; outro diário de capa verde, onde se escreve em azul. Com o tempo e a idade, aprendeu Rubens a manejar seus diários, segredo que apenas sua mãe sabia. Aprendeu também a lapidar seu “talento”, esquecer ou não, o que nem mesmo sua mãe imaginaria.

Continua...

Bruno Costa

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O diário sem memória

Do lado de fora da casa é possível ouvir os gritos abafados e, talvez para os mais sensíveis, os quais porventura passeiam pela calçada numa caminhada de fim de tarde ou ocupando o lugar de simples transeuntes, seja possível até mesmo sentir a tensão que visita o casal. Do lado de dentro o que se vê parece o fim; um casamento tateando sua bancarrota. Certamente nada de novo, como alguns bem poderiam observar. Sim, devo concordar. Mas não nos apressemos porque a história não termina aqui e precisamos prosseguir. Letícia envolveu-se com outra pessoa, um rapaz mais jovem que seu marido, embora não nos convenham mais detalhes e, por não ter o consentimento do marido, como é o costume já há muito tempo no mundo, teme acabar sem ele. Algumas feministas poderiam dizer que também isso seria comum e nada problemático, mas não iremos, insisto, nos apressar nos julgamentos.

Rubens não flutua como seria necessário em casos como este, quando uma pessoa fica "sem chão" como popularmente dizemos. O chão é o lugar onde sabemos pisar. Porém, Rubens se encontra de pé, embora as pernas lhe tremam e não façam valer qualquer firmeza, o próximo passo talvez esteja mais para uma queda livre, se é que algo pode ser merecidamente chamado livre, quem sabe unicamente isso, uma queda, mereça esse complemento. Para onde poderia ir agora sem sua mulher de longas aventuras? Precipitam-se os que pensam que o desejo se dê pela falta. Não é por descaso ou mesmo talento atrofiado para as necessidades do casamento de Rubens que a levou ao lugar que ainda pouco foi. O acaso que nos ronda desconhece as normas morais e as quantidades socialmente autorizadas, se bem me entendem. Caso contrário, que fique claro, ainda que nos demoremos mais no assunto, que Letícia não buscou no outro jovem suprir suas carências afetivo-matrimoniais, tanto não foi que ainda está com o marido e sem planos de deixá-lo. O desejo que a tomou de assalto não lhe descreveu o adultério, nem tampouco lhe disse que apenas um homem lhe bastaria e que então voltasse ao seu marido já que muitos não encontram com quem se deitar, sendo que ela já o tem. Tivera? Não sabemos onde os desencontros irão levar o ilustre casal. Por vezes o desejo vem como uma catástrofe natural, que independentemente dos esforços contrários acontecem, embora os homens façam o favor de os precipitarem.

Vejamos o lado da suposta vítima. Embora o medo parecesse seu único sustento neste instante, já sabia como tudo incrivelmente acabaria. Assim, num misto de alívio e melancolia, como um só sentimento, um só afeto, mas por carecer de inventar palavras não se pode sentenciar mais adequadamente, ainda bem, pois seria demasiado desagradável se soubéssemos falar tudo, dar nome a tudo, sendo que tudo nunca será, pois o mais ainda está por existir, ficamos por ora com as duas palavras aparentemente avessas, numa só dose para dizer que o homem decidiu sair. Ficaria longe uma semana para que não ruísse seu plano, este que, acalentemo-nos, ainda não nos foi revelado, não criemos mais preocupações, já nos basta um casal perdido em toda essa situação. Antes de fechar a porta disse Rubens que voltaria a abri-la, mas apenas talvez, com tom de “quem sabe?”, apenas se lhe perdoasse a traição, foi assim que disse pois assim julgou, para recomeçarem do zero, como se isso lhes fosse possível. Muitas vezes se começa do 1, do 3 ou até do -1, ou mesmo do -0,5 por encarecimentos de detalhes, porém jamais se começa do zero, que é um estado que não nos compete saber. Em meio a tudo, Rubens nem mesmo lembrara que já não seria a primeira vez.

Continua...
 
Bruno Costa