Quando ainda garoto, Rubens demonstrava difícil domínio nessa relação tão dinâmica entre lembranças e esquecimento, sim, a primeira no plural por permanecerem vivas, a segunda, ao que parece, une-se a uma só coisa, o buraco negro da memória e se mostra singular, se é que o que se apaga ainda faz parte do campo da memória. Para além de todos os mistérios, se algo é dito esquecido, esquecido está até que se prove o contrário. Por favor, tentemos não pensar em recalques, vamos deixar o mimo que é um divã para lidar com o caso, para variar um pouco se não é pedir muito.
No início, às primeiras vistas, tudo parecia um problema de indisciplina. “Os dedos na tomada causaram uns muitos choques por dia”, lembraria a mãe. Por sinal, gostam lá as mães de algo mais do que lembrarem a infância de seus filhos; pobrezinhas, muitas vezes é o pouco que lhes resta. Com o tempo já acreditara que, talvez, esses incidentes tenham sido a verdadeira causa. Vemos o que podemos. Memória fraca, pelo visto, todos nós temos; uns mais e outros menos, mas veremos que o problema do menino vai além de um fator hereditário.
A mãe de Rubens sempre pareceu preocupada e de várias formas tentou ajeitar o garoto. Como na época ainda não circulavam leis que proibissem os ditos responsáveis de ensinarem à flor da pele como se deve portar na vida, eram variados os castigos. Não será preciso nos zangar, não se trata de uma lembrança violenta de uma mãe desnaturada para com seu próprio filho. Era mãe por natureza e família por natureza, e pelo menos desde alguns séculos isso é sinônimo de disciplinar os filhos e antes que seja tarde, como temem alguns. Portanto, fustigar com vara parece que há muito é função familiar, mas não somente isso, pobres crianças, ainda tem os puxões de orelha, as chineladas nas nádegas, o cinto, a palmada. Sem contar os castigos, as ameaças e coisas do tipo e que bem conhecemos, seja por um lado, seja por outro.
Passadas as tentativas fracassadas, como numa brilhante ideia que se acende, mas que na verdade é um processo longo que desemboca a qualquer hora, percebeu que o problema maior já não era a memória do menino, mas sua maneira de abordá-lo. Castigou-lhe com um diário. É que o menino esquecia muita coisa, perdendo por vezes seus compromissos, a entrada e a saída. O que a mãe temia ser uma sem-vergonhice, uma doença, um distúrbio, ou como se diria hoje, um transtorno mnêmico, era um dom, uma maldição. É que isso varia segundo o momento, convenhamos. Algo que se da pela imanência, palavra esquecida, mas nem por isso menos real. Uma façanha do desejo com a colaboração dos imbróglios fisiológicos que como máquina funcionara e ainda há de funcionar até os dias de hoje. Esses que não serão os de agora, teremos que aguardar um pouco mais.
Em algum dado momento, não se sabe exatamente quando nem como, Rubens tivera que lidar com dois diários. Ao que tudo indica são também ordens de sua atenciosa mãe, mas ao certo não importa, até porque não há aqui alguém com dotes de Procurador Geral, ou quando muito não está para isso. Então, um diário cuja capa é preta e se escreve de vermelho; outro diário de capa verde, onde se escreve em azul. Com o tempo e a idade, aprendeu Rubens a manejar seus diários, segredo que apenas sua mãe sabia. Aprendeu também a lapidar seu “talento”, esquecer ou não, o que nem mesmo sua mãe imaginaria.
Continua...
Bruno Costa