segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Mais um Silva

O barulho do despertador não é o som mais agradável para anunciar o início da manhã de mais uma segunda-feira, apontando o começo de mais uma semana de aventuras na vida de mais um Silva. Antes, contudo, é necessário jogar uma água fria, não necessitamos de um balde cheio, nos leitoras esperançosos por adentrarem uma história de ação, viagem ou mesmo um tórrido romance. O que resolvi chamar provisoriamente de aventura pode, um pouco mais adiante, receber outros nomes menos entusiastas. Fica ao cargo de cada um quando for chegada a hora.

Seria mais justo com nosso Silva, deixar claro que mal começou o dia, ou ainda, nem bem começou o dia e ele já estava de pé. Isso ocorria toda semana, há alguns meses, o que não torna nada mais brando, ao contrário do que se poderia ingenuamente pensar. Ainda sonolento ele segue seu ritual diurno; lavar o rosto, tomar café, escovar os dentes, trocar a roupa, pouco importando a ordem dos fatores. O que altera o produto de nosso protagonista é sua devoção a Nossa Senhora, acredita ele. Nenhuma em especial; não a dos motoqueiros, não a dos pobres, nem mesmo a dos trabalhadores. Talvez a da grande família Silva, se houvesse, ou se ele soubesse. Então fica assim, a Mãe do Senhor, como crê e se agrada em entender. Suas mãos selam em seu corpo as marcas invisíveis da cruz e após isto, beija e coloca sua medalha devota.

No pequeno espaço encontrado ao lado de fora, o qual improvisou o denominou garagem, apanha sua motocicleta e sai para abastecer, porém não sem antes fincar sua pequena bandeira amarela, sua propaganda de trabalho, seu anúncio, donde se pode ler “moto-táxi”. O serviço não é legalizado, mas nem por isso deixa de ser importante. O transporte na cidade maravilhosa continua caótico, apesar do eterno futuro promissor. É neste veículo, sem muita segurança, que trabalhadores garantem a chegada de muitos, e disso se orgulha o Silva. Sim, orgulha-se, embora não se iluda. Sabe bem dos riscos das fiscalizações e do baixo lucro. Mas sem muito que fazer, pilota sua moto nas ruas do subúrbio da cidade, que do lado de cá não exibe muitas maravilhas, como bem desconfiamos.

Na primeira parada, duas candidatas se aproximam. Ele encosta e já se percebe o clima de disputa. Nenhuma delas irá ceder o lugar, afinal, ambas, como todos, estão sem tempo de sobra. Logo souberam que não era necessária uma disputa. Como se trata de uma “lotada”, havia espaço para as duas. Entreolharam-se receosas, mas Silva demonstrava confiança e logo tratou de ajudá-las a subir. Os assentos não eram dos mais confortáveis, mas disso já nem se reclama tanto. Pode ser o costume, que também agora em nada alivia a situação. O asfalto não era dos mais lisos, embora ainda muito bem se equilibrasse o trio.

Em alguns momentos, as passageiras ouviam Silva balbuciar algumas palavras, num mesmo tom, mesmo ritmo. Intrigada, a de trás perguntou a da frente o que seriam as palavras. “Ele está rezando uma Ave Maria”, foi a resposta. Logo foi possível ouvir em bom tom “bendito é o fruto do Vosso ventre...”. Até mesmo riram as duas, não sem suceder um grande estranhamento à parada da moto ao sinal de mais um passageiro. Elas discutiram dizendo que já ninguém cabia ali, como se preciso fosse. O rapaz que chegava trazia um sorriso amigo e logo sentou atrás delas; bem apertados e, agora, abraçados, quase fraternamente. Como dizia o rei: “na angústia nasce um irmão”. O medo das jovens não foi maior que a preocupação com o horário da labuta e, além disso, o novo passageiro as tranqüilizou, ou tentou, alegando todo dia fazer a lotada com o Silva. Fugir dos engarrafamentos era o ponto de vantagem. E a viagem prosseguia pela Avenida Brasil, bastante movimentada e perigosa, quando as jovens perceberam que o homem de trás também rezava, em sincronia com Silva. A aventura-pesadelo rumou ao Centro da cidade.

Perto do fim a moto acelerou por entre uns tantos carros, cortando um ônibus em alta velocidade para antecipar o fechamento do semáforo, mesmo este já estando enrubescido. O arrepio os atingiu em cheio e, nesta hora, a fé os uniu. Ou desespero, como queiram. Como um coral de igreja reformada, a plenos pulmões e em uníssono, rogaram a santa “agora e na hora de nossa morte...” e eis que as manobras milagrosas, da santa ou do Silva, mais uma vez permitiram ao protagonista terminar o primeiro serviço do dia, e aos demais sobreviverem. O momento os uniu, tal como um Santíssimo Quarteto. No ponto de chegada despediram-se com um “Amém” que selava a manhã gloriosa.

Silva respira e retorna, em busca de passageiros.

 
                                                                                                                                              Bruno Costa

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Os Sete Pecados Capitais: AVAREZA

Ela vivia há 20 anos naquela mesma rotina, não entendia o sorriso das outras pessoas que lá viviam. Cidade pacata... nada mudava pra ela. Maria, sua irmã, achava tudo uma graça, talvez porque tivesse apenas a metade de seus "longos" anos. Tatiana achava a cidade esquisita, achava as pessoas estranhas, pessoas que valorizavam o jardim da praça, a praça, as datas comemorativas e toda aquela festividade que as acompanhavam; porém... nada lhe confortava, nada afetava Tatiana. As crianças adoravam aquela farra, pois os faziam lembrar das histórias dos mais velhos, cada objeto, cada música, cada veste. Os idosos nem sequer viam o tempo passar, era uma alegria só! Preservar seus laços era tudo o que os faziam olhar para trás com sorriso estampado. Ah! Que beleza era a memória coletiva daquela cidade! Só Tatiana não a contemplava. A dinâmica acontecia: as senhoras eram responsáveis por algumas atividades, como por exemplo cuidar das comidas que encheriam a praça de sabor, os homens garantiam o andamento da cidade e com as crianaças por perto não tinha quem não fosse contagiado por aquela alegria. Era uma delícia cultivar aquela cultura, todo ano era aquela mesma euforia em setembro, mês da festa da cidade, e lá iam todos com seus objetos mais memoráveis para rua, exibi-los aos conterrâneos e aos turistas.
Todos eram bem-vindos! Lá na praça se ouvia de tudo um pouco, cada um falava de seu objeto como o mais bonito, o mais importante... cada qual com o seu fetiche. E dele viviam, pois eram as histórias e o significado simbólico daqueles objetos que valiam quase toda riqueza que mantinha a cidade. Os objetos eram demais desejados pelos que frequentavam a festa; pagava-se o preço que fosse para apenas ver os objetos; algumas raras vezes os vendiam. E assim os habitantes da cidade acumulavam.

Era uma bela rotina para todos, exceto para Tatiana que continuava não vendo graça em nada daquilo. Aquelas pessoas apegadas as suas histórias e objetos, só a faziam sentir-se mais distante daquele sentimento de apego. Cada objeto tinha seu valor e isso era o que mais importava para aqueles habitantes: valor afetivo, valor simbólico e até mesmo o próprio valor monetário. Lá era assim... todo setembro e as vezes até os outros meses do ano giravam em torno do apego ao significado daqueles valores.

Somente Tatiana achava o máximo a cidade vizinha, onde esse valor de guarda e acumulação de objetos não existia. Lá o lema eram as trocas constantes, as relações efusivas e passageiras; os objetos pessoais só significavam enquanto fossem o último modelo nas vitrines. Não existia nenhum penduricário para encenar nada. Tudo tornava-se lixo, após seu tempo restrito de uso... o descarte era o destino. Mas lá Tatiana sentia-se em casa. Dá sua cidade, só tinha olhos para toda aquela novidade da cidade ao lado, lá não se mantinha nada; com o descarte... a única coisa que se mantinham era o lixo... que se acumulava a cada instante.

Tatiana seguia assim... preferia não ver a beleza do "ar fresco" que respirava ao abrir sua janela. Só tinha olhos pro lixo, mesmo que indiretamente!


Joyce Abbade