quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Hasta la victoria

A porta do armário está entreaberta, sugerindo apenas uma sombra negra. Ao lado, os lençóis estão embaralhados numa cama ainda por fazer, sem travesseiros. Ele olha por todos os cantos, fareja o ar insistentemente. Talvez sinta algum perfume, talvez procure um. Desvia de alguns cabides pelo chão, não são muitos. Na escrivaninha, a gaveta aberta não traz nada além de duas canetas sem tampa, um lápis, um papel amassado e uma caneca minúscula, onde se pode ler Hasta la victoria siempre/Havana. Vai até o banheiro, de basculante fechado e chão úmido, com algumas gotas de água. Ele cheira aquelas gotas e lambe as pequenas poças que se formaram dentro do boxe. No meio do corredor um par de chinelos velhos e amarelados – quem sabe um dia fora branco? Diante dos chinelos ele se detém, mordisca um dos pés e o carrega por apenas três passos.
Então começa a perambular pela casa, do corredor para a cozinha, da cozinha para a área de serviço, de volta para a cozinha e de lá para a sala. Vai até a porta, arranha, bate, faz força, mas não consegue nada além de lhe descascar alguma tinta. Resmunga qualquer coisa ininteligível. Começa a chorar. Primeiro discretamente. Logo em seguida aumenta o volume. Algum vizinho próximo poderia ouvi-lo em seu aparente infortúnio, barulhento a esta altura. Ele volta para o quarto. Prefere se acomodar na cama, atracado com os lençóis, revirando-se de um lado para o outro, bagunçando a manhã sem companhia. A janela aberta permite a entrada de uma ventania que o faz parar por um instante. Imóvel, quase fecha os olhos, cessa a reviravolta e também os resmungos. Está de barriga para cima, com seu sexo exposto. Levanta-se, vagarosamente vai até a beirada da cama, olha para baixo e retorna até a cabeceira. Cheira de perto, bem perto, e lambe a madeira ininterruptamente.
Dentro de casa, apenas o som de seus movimentos. Fica na sala, sentado ao lado da porta, ouvindo o tique-taque do relógio. Boceja, deita-se, troca de posição por diversas vezes. Levanta-se, espreguiça o corpo com a traseira para o alto ao mesmo tempo em que boceja, deixando escapar um grunhido agudo, mas baixo. Sobe no sofá e se deita. Após alguns latidos pela vizinhança, rapidamente vai até a janela fechada de vidros canelados e se debruça. Os raios de sol incidem diretamente onde está. Desce e segue até um pote azul ao chão da cozinha, onde bebe bastante água, deixando escorrer um pouco até seu peito. Próximo ao pé da mesa vê um montinho de ração com restos de comida. Cheira, lambe e come uns bocados.
No banheiro, adentra o boxe e urina longamente, enquanto o líquido escorre em sua própria direção. A porta da sala se abre. Ele corre até lá e late incessantemente para alguém no escuro. A luz da sala é acesa. Um velho caminha até a estante da TV e apanha um papel dobrado sob um jornal, onde a manchete noticia a “ofensiva de militares aos comunistas”; o homem desdobra o papel, lê, amassa e joga ao chão. Ele acompanha o velho até a cozinha, latindo menos, cheirando-o mais. O velho retorna com um saco grande de ração em mãos e abre a porta da sala. Ele fica sentado ao chão, de orelhas empinadas enquanto o homem fala qualquer coisa. A porta ainda está aberta, a luz apagada e o velho, já ao lado de fora, assobia uma única vez. Embora abanando o rabo, sai lentamente ao seu encontro. 

segunda-feira, 11 de março de 2013

O Futuro do Pretérito

Galera!

Esta postagem não tratará de mais um conto literário. Antes, buscará se redimir pela crescente ausência de contos publicados. Não abandonei o blog, nem tampouco perdi o gosto pela escrita. Esta publicação é o motivo que me afastou do blog por tanto tempo, muito mais do que gostaria. Trata-se de minha dissertação de mestrado, intitulada "O Futuro do Pretérito: a experiência da memória como criação", escrita ao longo dos dois anos do mestrado no Programa de Pós-Graduação em Memória Social, pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Publiquei-a como livro no site: https://www.clubedeautores.com.br/

A quem interessar, basta acessar pelo link;

Compre aqui o livro 'O FUTURO DO PRETÉRITO'

No site, além do resumo, você pode ler um trecho inicial.
Enfim, espero que gostem!

Abraços!



segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Sobre quando nasce o pai


Saíra de casa tranquilamente naquela manhã de sábado, bocejando ainda o sono de toda uma semana de trabalho, qual o descanso não levara por completo. A vida dos engenheiros não é fácil, não são poucos os cálculos certeiros, as lógicas matemáticas, os funcionamentos mecânicos, a educação das máquinas, como tampouco o são as responsabilidades pelos efeitos e as discussões das quartas-feiras. Tudo para ao final do mês, com um quinhão não tão generoso, ouvir os comentários dos familiares ao comprar pouco mais que o pão e o leite, “este tem sorte”, “nasceu com a bunda virada para a lua”. Sabemos como é difícil de esquecer e todos se relembram mutuamente: “a culpa é sua pelo fracasso, a sorte é a responsável pelo sucesso”. Mas não perdendo de todo o fio da meada, retornemos ao moço que saíra em plena manhã de sol do sétimo dia para cumprir outra tarefa, desta vez missão dada por uma patroa.
Com um bebê em seus braços, despedira-se já ao lado de fora, ajeitando como pôde a boina da criança, sem deixar cair, claro está, a bolsa com duas fraldas extras, uma mamadeira com água, talco, entre outras pequenas coisas que provavelmente não usará e as quais, é preciso dizer, não fora ele o responsável por colocar na bolsa. Caminha sob a sombra até o ponto de ônibus e com mais destreza que o esperado, entra, paga e encontra assento com os passos lógicos, conhecimento profissional que trouxera para a vida. Ossos do ofício. Descera em frente ao posto médico e a provação viera de início: a fila. A paciência não é lá uma das qualidades deste homem da praticidade, como logo notará aquele que encarar este mulato de barbas negras e sobrancelhas grossas, no momento um tanto mal-encarado. Nem diríamos que sua profissão lhe exige serenidade, mas a vida...
Pensara duas, três, quatro ou cinco vezes antes de esbravejar com a criança no colo. Não o fez. Engoliu o ocaso da saúde pública porque assim fora necessário. A função de pai transforma mais do que um dia se pôde imaginar. Resolvera que o melhor seria ser pai naquela fila mesmo, sem tempo a perder. Fez de tudo um pouco: girou, levantou, fez-se garupa, sorrira falsamente para ver em seu filho o sorriso mais sincero. Acabou por gargalhar junto ao filho, sem saber que o mesmo o fizera para seu pai sorrir inocentemente. Ser pai parecera tão maravilhoso que a fila já não existia e a hora era chegada. Assustara-se junto da criança ao ver o choro barulhento dos que saíam das pequenas salas brancas. Foi o primeiro momento sublime. Temera o choro do filho.
Soubera desde o início, pois assim o dissera sua mãe e seu sogro, que nem sempre os pais livrariam seus filhos de um sofrimento qualquer. Porém, entre o saber e o sentir existe um abismo escancarado. Esquecera; disso todos esquecem. Logo era chegada sua vez, qual Abraão a entregar Isaac ao sacrifício, aguardara com fé de transportar montanhas que o anjo dos céus viesse em seu socorro, trazendo em lugar de seringa e agulha, apenas as famosas gotinhas, tão fáceis de engolir. O anjo não chegara a tempo, passaria futuramente, apenas nos próximos anos. Longe demais, distante demais. Seu filho já não está em poder de seus braços, é agora levado pela moça de branco, olhando para trás, olhos nos olhos, fitando seu pai com as lágrimas descendo a fio pelos olhos tristes que imploram socorro. O pai da provisão se vê sem consolo.
Sem perceber, está a chorar as lágrimas do filho. Não sentira a agulha lhe furar a pele e nem jamais sentirá pelo filho. Nem a primeira fratura, nem as dores de cabeça, sequer a bolada do futebol que ele ainda nem pode jogar. Ainda assim os olhos umedecem. Como que torcendo pelo fim de uma longa e delicada cirurgia, espera ao lado de fora os segundos passarem como horas. Chorou as lágrimas mesmas que o filho chorara; sentira a angústia, a tristeza, sentira a vida levar tudo em seu rumo maior. Naquele momento, sem saber, mas sentindo na pele como jamais imaginaria, transcendeu a máxima divina e amou aquele pequeno outro mais que a si mesmo. Soubera então que era pai, mesmo sem ponderar.
Chegara em casa e não se podia saber quem havia tido a pele perfurada. A tristeza no semblante era flagrante. A mãe, preocupada, perguntara se algo de errado havia acontecido durante a saga, embora desconfiasse por experiência própria sobre o ocorrido. Ela não estava errada. Já com o filho em mãos, a mulher logo lhe desembrulhou um doce qualquer e a alegria estava de volta. Entretanto, não para todos. O jovem pai ainda carregaria aquela tristeza por mais alguns minutos. Se a mãe sofre e amadurece por nove meses, este barbudo merece mais algumas horas para encarar a grande jornada do resto de sua vida.

Bruno Costa

segunda-feira, 14 de maio de 2012

'UMA PARTE DE MIM É MULTIDÃO"

"Não me pergunte quem eu sou e não me peça para permanecer o mesmo"


Foucault já nos aponta que a mudança é o que talvez devesse ser eterno
Não quero ser conhecida pelos feitos constantes, pelas características rotineiras
Uma parte de mim se espanta, assusto-me com coisa pouca, sim assusto-me!
Dialogo com o medo, com o exagero, com receios que não me cabem
Visível é essa fala atropelada que por vezes me sufoca,
Mas uma parte de mim também é silêncio, e que isso não vá de encontro ao que eu supostamente "deveria ser".
Ousadia... pode ser talvez levar meus passos a outras ruas, talvez um pouco distante daquelas que já bem conhecem.
É que as vezes é preciso dar face ao novo e lembrar que o seguro, um dia já não foi.
A construção é algo repentino e constante
Não me preocupar com os atributos que me conceituam
Mas deixar que a brisa passe e me acalme, ou que por vezes passe a tempestade, e eu saiba me conduzir nela.
Não quero saber o conhecido, sempre.
Nem ter compromisso com a identidade.
O movimento é o que conduz... e por que não... seduz?
A falta dele é o que pode nos manter em lugares sufocantes.
Não quero coerências... quero reticências
Talvez um pouco de coerência hoje, ou quem sabe amanhã
Mas, com certeza, não sempre
Que as satisfações não aclamem o seguro
Não nos defina, não nos paralise.
E que o fluxo nos passe e por que não, de vez em quando nos leve...


sexta-feira, 27 de abril de 2012

UM POUCO DE MIM

Estranho quando me chega esta sensação. Talvez seja até engraçado. Acontece que, se um corpo explode, o que está dentro sai e o corpo morre. O que acontece quando explode a alma? Ela morre? Se assim é, já não tem graça, de modo algum teria. Se não, além de engraçado, é também curioso. De quando em quando, sem saber como e vestindo a culpa no acaso, alguma intensidade distinta faz o corpo vibrar. De dentro para fora, de fora para dentro. Cada órgão vibra. A alma vibra. O embrolho é quando custa o fim. A alma transborda. Não há pele que a detenha, não há estômago que lhe embrulhe, não há coração que lhe fustigue, nem mesmo cérebro a prendê-la. Este sequer entende o que se passa. Quando muito vê. Daí ela sai e vai embora. Não pelos orifícios. Deixa para trás os olfatos gastos para cheirar perfumes outros. Esvai-se por todos os poros.

Ainda a vê, mesmo moribundo, apenas corpo, apenas olhos, o recém-zumbi. Somente o registro frio e desalmado. Ainda a vê individuar-se numa peça de roupa qualquer.  É o que se tem mais próximo, geralmente.  Daí, visto-a. Logo, não é mais o corpo que contém a alma, mas a alma quem detém o corpo. Talvez por isso se chamem uns aos outros de mascarados. Por vezes vestimos alma, mesmo não sendo para muitos, que fique claro. Terrível ou divertido? E se empresto a alguém, um amigo ou necessitado de momento? Tornar-se-ia, aquele que a usa, pele dentre almas.

Contudo, noutras vezes transbordo em copo. Pegam-me a encher; a traspassar meus limites. Bebem não a mim, mas em mim. Outras quantas vezes me deixam cair. Quebram-me. Passo a ser estilhaços. Julgam-me perigoso. Ainda pouco era a honra de sentir outras bocas a me conterem. Agora, um embrulho renegado. As vezes encarno facas, embora não ache nada prudente uma faca "almada". Já fui formiga. Apenas uma vez. O tempo não correu muito até ser esmagado. Estava demasiado próximo ao corpo de origem. Logo, logo fui chinelo. Era rotina ser pisado. Fui também onda cibernética. Viajei tão velozmente, tão velozmente que senti náuseas. Mas fui útil. 

Já me transbordei em água. Pouca água. Fui engolido. Naquela experiência inusitada, adentrei um corpo por lugares distintos. Em nenhuma das tantas vezes me encontrei com outra alma. Agora, fiz-me palavra. Ou fizeram-me. Não sei. Sei que o corpo que me escrevia, corpo que me criava, era morto. Morto-vivo. Talvez fosse o meu de origem. Importa muito pouco agora. Quando falo origem, é como o mundo, numa explosão. De lá surgi. Ao contrário de Clarice, incorporo palavra escrita apenas quando o corpo está morto. Assim passo, como agora. Tudo isso para já não ser daqui um pouco. É o tempo que dura a melhor das vidas, a proliferar-me sem fim, bastando uma leitura. 

Quando retorno ao que chamo corpo de origem, casa de passagem, jamais estou mais forte. Qual romantismo fajuto! Ainda, até hoje, jamais descobri antropofagias. Acontece sempre o contrário. Retorno mais ralo; encarno um corpo mais leve. Algo fica no caminho. Desconfio que se tenha um pouco de mim na água que se bebe. Um pouco de mim nas roupas rasgadas. No chinelo gasto, na faca cega, no bicho esmagado. Tem um pouco de minh'alma nas palavras escritas. Apenas um bocado. No mais, são outras as almas das letras, perdidas, que eventualmente se encontram e fundem aqui e ali, como agora. 

Ainda não sei. Engraçado ou terrível? Drama ou alegria? Nada posso concluir dessas tragédias. 

Tragédia!