sexta-feira, 15 de abril de 2011

O diário sem memória - final

Foi-se. Saiu já quase noite, sem rumo, precisava apenas sair, dirigir, acelerar. Passou ao outro lado da cidade, longe de casa, longe de conhecidos, longe das lembranças. Pelo menos era o que almejara, embora não seja difícil de imaginar que não passariam de ilusão, as lembranças recentes vieram sentadas sobre o banco do carona, desceram do carro e subiram junto dele ao quarto de hóspedes do hotel em que se hospedara; não o largaram, como se com ele estivessem algemadas. Seu consolo é saber que seu algoz não resiste à luz do dia, o esquecimento o levaria, bastaria apenas um bocado de concentração – ou seria a ausência completa dela – para que a memória se esvaísse.

Porém, diferentemente das noites em que Rubens sequer pode se lembrar, é o preço que se paga ao apagar as dores vividas, deixou seu quarto já em fins de noite e pôs-se a caminhar a pé pelas ruas da cidade. Algumas já dormiam em silêncio, outras resistiam às horas. Lá, avistara uma casa de festas, talvez uma boate, talvez um prostíbulo. Foi à porta e perguntou ao segurança do que se tratava o lugar. Para a alegria de Rubens o mesmo lhe garantiu a segunda suspeita. Rubens sorriu e subiu, era o momento de vingar a desavença, de aplainar o jugo desigual. Passou a semana longe de casa; sete dias no hotel, sete noites no puteiro, perdoem o mau jeito, mas por vezes, por pressa ou impaciência, necessitamos de clareza com as palavras. Durante este período, pouco falara com sua casa; escassas ligações, meias palavras, nenhum veredito. Pedidos de perdão não aceitos, clemência adiada.

Toda noite, antes de anotar suas tarefas em seu diário azul, onde escrevia antes de apagar-se a memória para de algum modo permanecer ligado em sua vida e a ela dar continuidade, encarava o diário vermelho como se este o desafiasse e, envergonhado por não encorajar-se a ler, procurou nos corpos das meretrizes o consolo, como se uma necessidade suprisse outra. Entretanto, soube Rubens muito bem aproveitar este confuso erro. Gozou todos os dias, com todas elas. Não é preciso detalhes, reclamam os leitores. Prometo não voltar a eles, mas este fica para que conste em seu histórico.

Ao sétimo dia não se permitiu o descanso, rejeitou a mediocridade e se pôs a folhear o livro proibido, ignorando o aviso da capa, “NÃO LEIA!”. Pela primeira vez Rubens se encontraria com seu passado, com seus monstros, ao menos, ainda que de forma inocente, era o que imaginara. Visitou, agora com sua leitura, dores moribundas. O que era morto reviveu. Os zumbis, esses mortos-vivos, também andam, talvez respirem, ainda que com dificuldade; sua existência é mais sofrida, pois suas vidas carregam as dores da morte. Paradoxo. Assim, igualmente o é com as memórias desenterradas. Lamentou pela memória triste e irritou-se consigo mesmo. Já não era a primeira vez que lera o diário vermelho. Chorou. Chorou hoje as dores de outros tempos. Choro duplo. Como uma onda seu passado inundou o momento levando embora a ilusão que permitiu a Rubens se pretender intocável.

Leu o que já havia lido. Seria um choro triplo? Uma dor ao cubo? Deu-se a ira, permitiu-a possuí-lo e arrasado, destruir o quarto. Deu-se ao silêncio, às retumbâncias dos tempos tornados um só, dos passados vividos e perspectivas futuras tornados instante. Percebera que apagar as dores e enterrar os mortos, ainda que não se visite o cemitério, não impossibilita os maus dias, nem mesmo voltando a apagá-los – o que parece temporário. Decide então apagar todos os seus dias, porém não todos de uma vez, logicamente; um após o outro, apenas isso, embora seja já incrivelmente muito. Uma rotina desfeita pela raiz pode ser um caminho mais eficiente, era o que imaginara. Ou apenas o que desejara. Num lapso de não se sabe o que, acende uma pequena fogueira e queima o diário vermelho e com ele os espectros assombrosos de seu passado. Rubens é agora o homem sem memória. Anota as tarefas no diário azul. Esquece e dorme.

Volta para casa e toma em seus braços sinceros a mulher que lhe espera.