quarta-feira, 21 de março de 2012

NOS BURACOS DO TEMPO - final

A ansiada noite é chegada e Rodolfo está pronto como quem vai para um encontro, de banho tomado e com direito à perfume importado, tomado do armário de seu pai, o qual não se deu pelo empréstimo, devidamente distribuído pelos pulsos e pelas laterais do pescoço, pouco abaixo das orelhas, meticulosamente. Veste também sua roupa mais nova e conta ainda com uma blusa inédita. Parece esquecer, com ajuda da altivez que assola a todos em algum momento, que em tudo correndo nos conformes de sua vontade, nada sua "parceira" recordaria do encontro à um, se me permitem elucidar a impossibilidade, acreditando, especialmente a partir de agora, que o que não há passa a haver no momento em que se diz, ou no momento em que se faz, embora de naturezas diferentes, as palavras podem dar sentido às coisas, ou ainda, não nos custa arriscar, trazê-las a existência.
Trancado em seu quarto e se esforçando, escondido por debaixo das cobertas e torcendo compenetradamente para não receber uma indesejada visita dos pais, já sua pela expectativa do encontro, sua pelo medo ao flagrante. E toda sua diligência em encenar o ritual do sono foi recompensado. A casa em silêncio recebera os olhares escondidos de Rodolfo, confirmando o recolhimento de sues progenitores, por apenas uma fresta de porta aberta, o que já não nos é segredo, é a especialidade do menino ou mesmo um talento inato de adolescentes. 
Qual não foi sua frustração ao se dar conta dos já passados cento e vinte minutos desde que começara o ato de espionagem sem que a espionada houvesse aparecido no lugar de sempre e com a desatenção de sempre, às suas vistas. Pusera-se a pensar em sua desilusão e em qual seria o motivo, até que sua parede revela um calendário, estampado do melhor de Alfred Hitchcock, a lhe denunciar a sexta-feira presente, dia em que costumeiramente não a via chegar em casa, quanto menos no horário pretendido. Recolhera-se a espera do sono, talvez a única visita possível, não sem antes despir-se  das roupas do desencontro.
No dia seguinte, com a ansiedade lançada para a próxima semana, foi-se à busca de mais alguns dvds para sua extensa coleção, numa loja mais próxima ao centro da cidade. Adentrou o ônibus e pôs a vida a correr pelos passados das tão inusitadas últimas cenas. Lembrou também da noite anterior e pensou em como a vida era soberba. Carregava em sua natureza, falamos da vida, uma vontade própria, a qual sempre buscara e buscará afirmar e que, grosso modo, para não nos alongarmos, consiste em nos decepcionar. Não por mal, mas porque sua força desconhece leis, não respeita regras morais e não se compraz em nossos planos. Ele odiou a anarquia do acaso com um ódio adolescente. Odiou a si mesmo por não ter percebido tudo enquanto era tempo. Odiou o futuro pela incerteza em poder viver naquele buraco de tempo mais tempo, numa outra vez que fosse. Odiou a razão, ou seus limites, por não ter a certeza de tudo aquilo que pensara. Ocorreu-lhe ainda, antes de chegar a seu ponto, que todo seu pensamento era ódio. Esqueceu-se apenas em como era transitório, o pensamento, quanto mais quando se tem menos idade. 
Atento ao semáforo que o separa da calçada de destino, atravessa quando de direito, juntamente com uma senhora de mãos dadas a uma criança sonolenta e, em fluxo contrário, um casal de adultos que parece vir do local para onde vai. As ruas estão quase desabitadas se as compararmos aos dias de trabalho. Um sábado mais parece o dia após a extinção. Rodolfo ainda está sobre a faixa de pedestres quando paralisa, perde os sentidos, sem desfalecer, porém com sua atividade cerebral pausada. Sem cair, seus olhos não se fecham e seu pulmão não se contrai. É Rodolfo quem parece imóvel no tempo. Seu relógio de pulso está estático, como se sua bateria houvesse esgotado as energias, marcando dez horas e dez minutos. Assim permanece no tempo, durante o tempo em que uma menina se aproxima. Tudo dura pouco até ela partir. Pouco? Qual noção de tempo... A cada um o que se experimenta dele. 
Rodolfo retoma a caminhada ao ritmo de seu relógio que voltara a funcionar. Sua pele está arrepiada, leve calafrio que lhe perpassa sem vestígios. Envolto neste mistério dermatológico, chega até a calçada de destino. Dali mesmo, avista o relógio do edifício central, rachado, como constata intrigado. Seus ponteiros não estão presos ao eixo central. Saindo pela tangente, tal qual alguém que foge a missão destinada, o ponteiro dos minutos está atravessado no vidro, uma metade para dentro, outra para fora; o dos segundos  caíra sobre a base; o das horas é o único que permanecera fixado ao eixo, muito embora não funcione como deveria: pendurado está como um sino de catedral, completamente mudo.