segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Sobre quando nasce o pai


Saíra de casa tranquilamente naquela manhã de sábado, bocejando ainda o sono de toda uma semana de trabalho, qual o descanso não levara por completo. A vida dos engenheiros não é fácil, não são poucos os cálculos certeiros, as lógicas matemáticas, os funcionamentos mecânicos, a educação das máquinas, como tampouco o são as responsabilidades pelos efeitos e as discussões das quartas-feiras. Tudo para ao final do mês, com um quinhão não tão generoso, ouvir os comentários dos familiares ao comprar pouco mais que o pão e o leite, “este tem sorte”, “nasceu com a bunda virada para a lua”. Sabemos como é difícil de esquecer e todos se relembram mutuamente: “a culpa é sua pelo fracasso, a sorte é a responsável pelo sucesso”. Mas não perdendo de todo o fio da meada, retornemos ao moço que saíra em plena manhã de sol do sétimo dia para cumprir outra tarefa, desta vez missão dada por uma patroa.
Com um bebê em seus braços, despedira-se já ao lado de fora, ajeitando como pôde a boina da criança, sem deixar cair, claro está, a bolsa com duas fraldas extras, uma mamadeira com água, talco, entre outras pequenas coisas que provavelmente não usará e as quais, é preciso dizer, não fora ele o responsável por colocar na bolsa. Caminha sob a sombra até o ponto de ônibus e com mais destreza que o esperado, entra, paga e encontra assento com os passos lógicos, conhecimento profissional que trouxera para a vida. Ossos do ofício. Descera em frente ao posto médico e a provação viera de início: a fila. A paciência não é lá uma das qualidades deste homem da praticidade, como logo notará aquele que encarar este mulato de barbas negras e sobrancelhas grossas, no momento um tanto mal-encarado. Nem diríamos que sua profissão lhe exige serenidade, mas a vida...
Pensara duas, três, quatro ou cinco vezes antes de esbravejar com a criança no colo. Não o fez. Engoliu o ocaso da saúde pública porque assim fora necessário. A função de pai transforma mais do que um dia se pôde imaginar. Resolvera que o melhor seria ser pai naquela fila mesmo, sem tempo a perder. Fez de tudo um pouco: girou, levantou, fez-se garupa, sorrira falsamente para ver em seu filho o sorriso mais sincero. Acabou por gargalhar junto ao filho, sem saber que o mesmo o fizera para seu pai sorrir inocentemente. Ser pai parecera tão maravilhoso que a fila já não existia e a hora era chegada. Assustara-se junto da criança ao ver o choro barulhento dos que saíam das pequenas salas brancas. Foi o primeiro momento sublime. Temera o choro do filho.
Soubera desde o início, pois assim o dissera sua mãe e seu sogro, que nem sempre os pais livrariam seus filhos de um sofrimento qualquer. Porém, entre o saber e o sentir existe um abismo escancarado. Esquecera; disso todos esquecem. Logo era chegada sua vez, qual Abraão a entregar Isaac ao sacrifício, aguardara com fé de transportar montanhas que o anjo dos céus viesse em seu socorro, trazendo em lugar de seringa e agulha, apenas as famosas gotinhas, tão fáceis de engolir. O anjo não chegara a tempo, passaria futuramente, apenas nos próximos anos. Longe demais, distante demais. Seu filho já não está em poder de seus braços, é agora levado pela moça de branco, olhando para trás, olhos nos olhos, fitando seu pai com as lágrimas descendo a fio pelos olhos tristes que imploram socorro. O pai da provisão se vê sem consolo.
Sem perceber, está a chorar as lágrimas do filho. Não sentira a agulha lhe furar a pele e nem jamais sentirá pelo filho. Nem a primeira fratura, nem as dores de cabeça, sequer a bolada do futebol que ele ainda nem pode jogar. Ainda assim os olhos umedecem. Como que torcendo pelo fim de uma longa e delicada cirurgia, espera ao lado de fora os segundos passarem como horas. Chorou as lágrimas mesmas que o filho chorara; sentira a angústia, a tristeza, sentira a vida levar tudo em seu rumo maior. Naquele momento, sem saber, mas sentindo na pele como jamais imaginaria, transcendeu a máxima divina e amou aquele pequeno outro mais que a si mesmo. Soubera então que era pai, mesmo sem ponderar.
Chegara em casa e não se podia saber quem havia tido a pele perfurada. A tristeza no semblante era flagrante. A mãe, preocupada, perguntara se algo de errado havia acontecido durante a saga, embora desconfiasse por experiência própria sobre o ocorrido. Ela não estava errada. Já com o filho em mãos, a mulher logo lhe desembrulhou um doce qualquer e a alegria estava de volta. Entretanto, não para todos. O jovem pai ainda carregaria aquela tristeza por mais alguns minutos. Se a mãe sofre e amadurece por nove meses, este barbudo merece mais algumas horas para encarar a grande jornada do resto de sua vida.

Bruno Costa

segunda-feira, 14 de maio de 2012

'UMA PARTE DE MIM É MULTIDÃO"

"Não me pergunte quem eu sou e não me peça para permanecer o mesmo"


Foucault já nos aponta que a mudança é o que talvez devesse ser eterno
Não quero ser conhecida pelos feitos constantes, pelas características rotineiras
Uma parte de mim se espanta, assusto-me com coisa pouca, sim assusto-me!
Dialogo com o medo, com o exagero, com receios que não me cabem
Visível é essa fala atropelada que por vezes me sufoca,
Mas uma parte de mim também é silêncio, e que isso não vá de encontro ao que eu supostamente "deveria ser".
Ousadia... pode ser talvez levar meus passos a outras ruas, talvez um pouco distante daquelas que já bem conhecem.
É que as vezes é preciso dar face ao novo e lembrar que o seguro, um dia já não foi.
A construção é algo repentino e constante
Não me preocupar com os atributos que me conceituam
Mas deixar que a brisa passe e me acalme, ou que por vezes passe a tempestade, e eu saiba me conduzir nela.
Não quero saber o conhecido, sempre.
Nem ter compromisso com a identidade.
O movimento é o que conduz... e por que não... seduz?
A falta dele é o que pode nos manter em lugares sufocantes.
Não quero coerências... quero reticências
Talvez um pouco de coerência hoje, ou quem sabe amanhã
Mas, com certeza, não sempre
Que as satisfações não aclamem o seguro
Não nos defina, não nos paralise.
E que o fluxo nos passe e por que não, de vez em quando nos leve...


sexta-feira, 27 de abril de 2012

UM POUCO DE MIM

Estranho quando me chega esta sensação. Talvez seja até engraçado. Acontece que, se um corpo explode, o que está dentro sai e o corpo morre. O que acontece quando explode a alma? Ela morre? Se assim é, já não tem graça, de modo algum teria. Se não, além de engraçado, é também curioso. De quando em quando, sem saber como e vestindo a culpa no acaso, alguma intensidade distinta faz o corpo vibrar. De dentro para fora, de fora para dentro. Cada órgão vibra. A alma vibra. O embrolho é quando custa o fim. A alma transborda. Não há pele que a detenha, não há estômago que lhe embrulhe, não há coração que lhe fustigue, nem mesmo cérebro a prendê-la. Este sequer entende o que se passa. Quando muito vê. Daí ela sai e vai embora. Não pelos orifícios. Deixa para trás os olfatos gastos para cheirar perfumes outros. Esvai-se por todos os poros.

Ainda a vê, mesmo moribundo, apenas corpo, apenas olhos, o recém-zumbi. Somente o registro frio e desalmado. Ainda a vê individuar-se numa peça de roupa qualquer.  É o que se tem mais próximo, geralmente.  Daí, visto-a. Logo, não é mais o corpo que contém a alma, mas a alma quem detém o corpo. Talvez por isso se chamem uns aos outros de mascarados. Por vezes vestimos alma, mesmo não sendo para muitos, que fique claro. Terrível ou divertido? E se empresto a alguém, um amigo ou necessitado de momento? Tornar-se-ia, aquele que a usa, pele dentre almas.

Contudo, noutras vezes transbordo em copo. Pegam-me a encher; a traspassar meus limites. Bebem não a mim, mas em mim. Outras quantas vezes me deixam cair. Quebram-me. Passo a ser estilhaços. Julgam-me perigoso. Ainda pouco era a honra de sentir outras bocas a me conterem. Agora, um embrulho renegado. As vezes encarno facas, embora não ache nada prudente uma faca "almada". Já fui formiga. Apenas uma vez. O tempo não correu muito até ser esmagado. Estava demasiado próximo ao corpo de origem. Logo, logo fui chinelo. Era rotina ser pisado. Fui também onda cibernética. Viajei tão velozmente, tão velozmente que senti náuseas. Mas fui útil. 

Já me transbordei em água. Pouca água. Fui engolido. Naquela experiência inusitada, adentrei um corpo por lugares distintos. Em nenhuma das tantas vezes me encontrei com outra alma. Agora, fiz-me palavra. Ou fizeram-me. Não sei. Sei que o corpo que me escrevia, corpo que me criava, era morto. Morto-vivo. Talvez fosse o meu de origem. Importa muito pouco agora. Quando falo origem, é como o mundo, numa explosão. De lá surgi. Ao contrário de Clarice, incorporo palavra escrita apenas quando o corpo está morto. Assim passo, como agora. Tudo isso para já não ser daqui um pouco. É o tempo que dura a melhor das vidas, a proliferar-me sem fim, bastando uma leitura. 

Quando retorno ao que chamo corpo de origem, casa de passagem, jamais estou mais forte. Qual romantismo fajuto! Ainda, até hoje, jamais descobri antropofagias. Acontece sempre o contrário. Retorno mais ralo; encarno um corpo mais leve. Algo fica no caminho. Desconfio que se tenha um pouco de mim na água que se bebe. Um pouco de mim nas roupas rasgadas. No chinelo gasto, na faca cega, no bicho esmagado. Tem um pouco de minh'alma nas palavras escritas. Apenas um bocado. No mais, são outras as almas das letras, perdidas, que eventualmente se encontram e fundem aqui e ali, como agora. 

Ainda não sei. Engraçado ou terrível? Drama ou alegria? Nada posso concluir dessas tragédias. 

Tragédia!

quarta-feira, 21 de março de 2012

NOS BURACOS DO TEMPO - final

A ansiada noite é chegada e Rodolfo está pronto como quem vai para um encontro, de banho tomado e com direito à perfume importado, tomado do armário de seu pai, o qual não se deu pelo empréstimo, devidamente distribuído pelos pulsos e pelas laterais do pescoço, pouco abaixo das orelhas, meticulosamente. Veste também sua roupa mais nova e conta ainda com uma blusa inédita. Parece esquecer, com ajuda da altivez que assola a todos em algum momento, que em tudo correndo nos conformes de sua vontade, nada sua "parceira" recordaria do encontro à um, se me permitem elucidar a impossibilidade, acreditando, especialmente a partir de agora, que o que não há passa a haver no momento em que se diz, ou no momento em que se faz, embora de naturezas diferentes, as palavras podem dar sentido às coisas, ou ainda, não nos custa arriscar, trazê-las a existência.
Trancado em seu quarto e se esforçando, escondido por debaixo das cobertas e torcendo compenetradamente para não receber uma indesejada visita dos pais, já sua pela expectativa do encontro, sua pelo medo ao flagrante. E toda sua diligência em encenar o ritual do sono foi recompensado. A casa em silêncio recebera os olhares escondidos de Rodolfo, confirmando o recolhimento de sues progenitores, por apenas uma fresta de porta aberta, o que já não nos é segredo, é a especialidade do menino ou mesmo um talento inato de adolescentes. 
Qual não foi sua frustração ao se dar conta dos já passados cento e vinte minutos desde que começara o ato de espionagem sem que a espionada houvesse aparecido no lugar de sempre e com a desatenção de sempre, às suas vistas. Pusera-se a pensar em sua desilusão e em qual seria o motivo, até que sua parede revela um calendário, estampado do melhor de Alfred Hitchcock, a lhe denunciar a sexta-feira presente, dia em que costumeiramente não a via chegar em casa, quanto menos no horário pretendido. Recolhera-se a espera do sono, talvez a única visita possível, não sem antes despir-se  das roupas do desencontro.
No dia seguinte, com a ansiedade lançada para a próxima semana, foi-se à busca de mais alguns dvds para sua extensa coleção, numa loja mais próxima ao centro da cidade. Adentrou o ônibus e pôs a vida a correr pelos passados das tão inusitadas últimas cenas. Lembrou também da noite anterior e pensou em como a vida era soberba. Carregava em sua natureza, falamos da vida, uma vontade própria, a qual sempre buscara e buscará afirmar e que, grosso modo, para não nos alongarmos, consiste em nos decepcionar. Não por mal, mas porque sua força desconhece leis, não respeita regras morais e não se compraz em nossos planos. Ele odiou a anarquia do acaso com um ódio adolescente. Odiou a si mesmo por não ter percebido tudo enquanto era tempo. Odiou o futuro pela incerteza em poder viver naquele buraco de tempo mais tempo, numa outra vez que fosse. Odiou a razão, ou seus limites, por não ter a certeza de tudo aquilo que pensara. Ocorreu-lhe ainda, antes de chegar a seu ponto, que todo seu pensamento era ódio. Esqueceu-se apenas em como era transitório, o pensamento, quanto mais quando se tem menos idade. 
Atento ao semáforo que o separa da calçada de destino, atravessa quando de direito, juntamente com uma senhora de mãos dadas a uma criança sonolenta e, em fluxo contrário, um casal de adultos que parece vir do local para onde vai. As ruas estão quase desabitadas se as compararmos aos dias de trabalho. Um sábado mais parece o dia após a extinção. Rodolfo ainda está sobre a faixa de pedestres quando paralisa, perde os sentidos, sem desfalecer, porém com sua atividade cerebral pausada. Sem cair, seus olhos não se fecham e seu pulmão não se contrai. É Rodolfo quem parece imóvel no tempo. Seu relógio de pulso está estático, como se sua bateria houvesse esgotado as energias, marcando dez horas e dez minutos. Assim permanece no tempo, durante o tempo em que uma menina se aproxima. Tudo dura pouco até ela partir. Pouco? Qual noção de tempo... A cada um o que se experimenta dele. 
Rodolfo retoma a caminhada ao ritmo de seu relógio que voltara a funcionar. Sua pele está arrepiada, leve calafrio que lhe perpassa sem vestígios. Envolto neste mistério dermatológico, chega até a calçada de destino. Dali mesmo, avista o relógio do edifício central, rachado, como constata intrigado. Seus ponteiros não estão presos ao eixo central. Saindo pela tangente, tal qual alguém que foge a missão destinada, o ponteiro dos minutos está atravessado no vidro, uma metade para dentro, outra para fora; o dos segundos  caíra sobre a base; o das horas é o único que permanecera fixado ao eixo, muito embora não funcione como deveria: pendurado está como um sino de catedral, completamente mudo.