terça-feira, 28 de junho de 2011

O carpinteiro e a canga verde-limão

“Amanha será um bom dia para ir à praia”, foi o que pensei ontem. Não estava de todo equivocado. A manhã é ensolarada, porém sem demasia. Se for verdade que existe uma medida certa para as coisas, o calor encontrara seu apogeu. A temperatura não é elevada e venta fresco, dando a ilusão de um refrigerador tamanho celestial perpassando toda a região beira-mar e, devo dizer, refrescando até mesmo a areia dourada, reluzente como um sol que nasce debaixo, de maneira tal que me martirizo por haver esquecido os óculos escuros. Praia vazia, apenas alguns gatos pingados, se é que isso da em praia. Soaria mais verídico dizer “cães pingados”, mas estes não pingam, estão mais para algo derramado.  Não estamos no verão, é bom lembrar, tampouco é final de semana. Terça-feira é dia de labuta para quem não pode escolher as folgas. Nem todos ganham bem a vida como artesãos. Isso se ainda os há, caso não seja eu o último.
A manhã segue normal e, enquanto saboreio uma água de coco, sequer transpiro. Tão atípico que, ao dar por mim, vejo uma esvoaçante canga verde-limão de uma sereia que, ao que se nota, trocou por definitivo as esporádicas subidas à superfície marítima e as investidas aos indefesos marinheiros, pelos desfiles nas extensas areias de Ipanema e a sedução aos mortais cariocas que a possam ver. Boa sorte a minha. Terminada a tarefa de estender a canga, sedutoramente, diga-se de passagem, levanta-se agora para ajeitar o biquíni tomara-que-caia, a parte dos seios cobertos por um lilás fechado, com alguns pequenos detalhes estampados aos quais não pude identificar sequer a cor, quanto mais o que era, tamanho meu introspectivo desatino. A parte inferior era lisa, também fechada, desfilando em tom cinza, talvez grafite, mas isso é o que menos importa na paisagem, embora contraste maravilhosamente com sua pele branca, daquelas que não azedam.
Assisto a tudo sentado, no tempo em que minha retina desistiu de enviar ao cérebro os estímulos luminosos, que por isso da areia já não me incomodam. Seu tom alvo forma algo como uma raiz que sustenta aquelas pernas, que em sua textura jovem e lisa, rivaliza com a areia velha e pisada. Pernas, cintura fina, seios escondidos como um tesouro a seduzir o pirata. Quem me dera ter um tapa-olho. Seu colo desnudo, graças a seus loiros cabelos em semi-coque, deixando sua nuca, a qual não vejo, mas posso imaginar, inteiramente livre. Alguns fios rebelam-se, teimam em levitar ao ritmo do vento. Nada que incomode uma deusa. Seus brincos de argolas grandes a deixam ainda mais cinematográfica. Começo a suar.
Olha-me! Qual despeito o meu?! Em verdade, olha apenas em minha direção enquanto, agachada, apanha em sua bolsa o protetor solar. Olha seguidamente, interrompendo-se brevemente em alguns instantes. Está de óculos escuros. Fosse eu um tipo praiano juraria que é para mim. Ela ergue com suas delicadas mãos o protetor, num gesto em que simboliza o oferecimento de seu corpo ao herdeiro, como um rei Artur que irá arrancar a espada pela força que o torna “o escolhido” em meio a muitos. Segue com sua mão em minha direção a ostentar o recipiente. Será um convite? Estou desfalecendo... Retomo rapidamente a água de coco e espreito sem barricadas. Ainda que de óculos escuros, estou certo de que é meu o seu desejo. Meu coração deve dar-se a ver de lá, de tanto que insiste em bater estrondosamente. Bastar-me-iam a insensatez e alguns ligeiros passos e estaria eu a puxar conversa com um “bom dia”, “qual a sua graça?” ou um ousado “necessita ajuda?”. Estaria a sua frente, a vê-la se deitar, sua pele sedosa abrigando minhas mãos espalmadas a talhar meu desejo em suas costas atrevidas. Como faço arte com madeira, de certo que ela não esqueceria minhas talentosas mãos. Ombros, braços, pernas, “com sua autorização”, riríamos os dois. Contar-lhe-ia meu ofício; ela se lembraria de um avô carpinteiro que jamais existiu. Seria o primeiro de muitos encontros.
Ainda nem perguntei seu nome e dou por mim que na distância em que nos encontramos, ficaria eu a falar com os pombos. Deixo então de sonhar e levanto decidido a me aproximar quando por mim passa um rapaz alto, devidamente bronzeado, numa corrida atlética a qual me faltaria o ar. Ele chega, ela sorri. Eles brincam e se beijam rapidamente, com aquele beijo de confiança que somente entre namorados se procede. O privilégio é dele; rei Artur. E eu aqui, sem encontrar assento na távola redonda.   Fosse antes uma sereia e me consolaria o fim daquele marinheiro. Poderia ser eu o próximo, morreria feliz.
Invejo cada detalhe desta cena. É incrível como uma mulher possa não saber a desavença que um protetor traz para a vida de um homem. Ela não olhara para mim. A consciência é uma perdição dolorosa. Quem foi que disse o contrário? De certo alguém que não a viu daqui, de onde a vejo. De onde a vejo parece uma atriz pela beleza de seu rosto, cada parte compõe sem medo uma perfeita sintonia com as demais. Corpo de dançarina, desenhado, mas sem ares de academia. Cheia de assuntos, os quais eu não acompanharia; de praias pelo mundo afora, de festas, viagens. Se pudesse lhe contar a poesia das madeiras maciças, dos cálculos, das geometrias, da vida que dou aos troncos. Se visse meus telhados, portas, assoalhos, móveis. Aceitar-me-ia como o homem da casa que seria nossa. Todavia, agora penso que estive no ofício errado. Deveria estar a fazer pranchas. Estaria ao pé de seu ouvido, a sentir seu perfume vencer a maresia, ensinando-lhe os truques das ondas, “é possível andar sobre as águas, meu bem”.
Indo embora, passa por mim envolta em sua canga verde-limão, já sem os óculos e, como danou a fazer boa parte da manhã, olha-me. Agora sei, eram mesmo para mim aqueles olhos castanhos que acabo de conhecer e que ofuscam até mesmo o azul brilhante do mar, que ofuscam até mesmo o azul dourado do céu. Ela sorri de canto de boca ao passo que me fulmina, enquanto o rei Artur parece se ocupar de um aparelho celular. Um pouco mais tarde, ainda anestesiado, mergulho na esperança de curar a ressaca de minha alma embebida de saudade. Ao retornar, encontro a canga verde-limão estendida. Procuro-a por toda parte. Não a encontro. Talhei-a eu, numa paixão inventada de artesão?