sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A Vida dos Monumentos - final


Lá estava do outro lado da rua, o número 53, muro baixo e chapiscado, onde a cadeira de seu velho amigo velho já não estaria. Foi dali, assustado, que vira seu amigo sair pela última vez, sedado, levemente acordado, quase sonâmbulo, com um resquício de transe em seu olhar, como que suplicando ajuda, como que clamando ser acreditado. Muitas vezes é o que resta aos nossos velhos, bem o sabe senhor Esteves, pedir crédito para existir. "Tarde demais", culpava-se, "isso não se poderá mudar". As lembranças são dolorosas e essas a idade não faz esquecer. Recorda o dia em que abrira o jornal e, estupefato, lera a notícia de que, numa cidade vizinha, onde nascera seu velho amigo velho, uma estátua fora erguida com a legenda "HERÓI DE GUERRA", entre outras homenagens. "Logo ele, tão covarde", ria-se o senhor Esteves, "ele que odiava a guerra; tudo por ser o primeiro", concluía Esteves, crendo que o amigo fora o primeiro a desvendar a barbárie.

Mas caso o senhor Esteves dali não saísse logo, tarde também seria para ele, pois o relógio permanece a circular, esse é o regime de Cronos. Seu velho amigo velho nada havia feito de relevante, da guerra muito mal participou, recusou-se a atirar, recusou-se a fugir, recusou-se a ajudar. Depois de morto tornara-se o um senhor da guerra. Já o senhor Esteves é um grande poeta, mesmo que há uns quantos tempos não produza. Ele que se tornou agora um engodo para a economia, um atraso para o progresso, um desvio para o axioma do "novo". Caindo em si, do pouco que lhe resta, vai à direção de sua casa por um caminho diferente, dadas  as circunstâncias, nada mal. Ainda da esquina pode avistar ao longe, escorando-se junto ao poste como um detetive de um filme "meia-boca", porque convenhamos, Sherlock seria demasiada ingenuidade pelo que se vê. Percebera com sua vista cansada que o perigo ainda não aperta tanto. Seguira rezando, um pouco involuntariamente, ele que em divindades jamais acreditou.

Adentrando a pensão lhe faltou à coragem em encarar a senhora dona do lugar, que da cozinha já anunciava o cheiro de queimado. Entretanto, as narinas que mal respiram não se dão conta dos odores que lhe visitam, isto é, o senhor Esteves subiu diretamente a seu quarto. Entrou em seus aposentos já tentando trancar a porta para que ninguém se aproximasse, mas as chaves se escondiam bem, maquiavelicamente espreitando e esperando o desfecho fatal, rindo-se silenciosamente com requintes de crueldade. Já indiferente à porta, partira ávido atrás de seus comprovantes de existência. Picotou-os todos, pelo menos os que encontrara, colocando todos os fragmentos numa sacola plástica de mercado, sua melhor mala e quem sabe o melhor disfarce. Dali, suando, escutara algo que parecia um automóvel a estacionar, uma ambulância, como viria a conferir pela janela. Um triste enjôo nascera entre as entranhas, escalando todo o caminho por onde só se deveria descer. Os vômitos lhe saíam fracos; o senhor Esteves escorava-se nas paredes buscando a porta que lhe tiraria dali, a porta que lhe abriria um novo caminho de fuga, que lhe permitiria outro lugar para se estar e aquele maldito lugar, outrora um lar, enfim abandonar. É trágico como um lugar em poucos minutos, outras vezes alguns dias, algumas declarações, pensamentos, com muito pouco um lugar se transfigura completamente, neste caso, para o pior.

Quem lhe amparou pelos braços enquanto desfalecia fora um dos enfermeiros. Aterrorizado e perdendo os sentidos, o senhor Esteves não pôde sequer xingar seu algoz. Por um lado se acalenta, é o braço esquerdo, enquanto que, por outro lado, se afugenta, é o braço direito. A injeção tem efeito instantâneo. Dali até seu destino, esse sim um nome bem a calhar, pois como tal não se escolhe, suas últimas memórias seriam estilhaçadas tal qual os documentos rasgados, mais fragmentadas que de costume. Numa das poucas imagens que lhe sobrara, já dentro da suposta ambulância, vira ao lado de fora a jovem jornalista, neta de seu velho amigo velho, com a cara de pesar, com a cara do dever cumprido, tudo em apenas um rosto. Apagou novamente, apagou derradeiramente. Suas lembranças agora são nossas. Nem mesmo lhe restou tempo para ver sua sedação total, seu desfeche, sua bancarrota. Não veria também que sua pele seria arrancada antes mesmo do falecimento oficial. Banhado em cobre, corrigidos os contornos antes da secagem final. Já não batia seu coração quando foi tornado estátua. Não veria as homenagens e nem as honras em praça pública. Não veria também que a jovem jornalista não iria à inauguração do monumento no centro da cidade.

O que também o senhor Esteves não vira em sua última troca de olhares com a moça, fora seu semblante desconfiado, talvez por honra de sangue, talvez por veia jornalística, provavelmente pelos dois. Não vira também o que aconteceria com a investigação que a jovem conduziria, clandestinamente, e os anúncios que faria - como na polêmica manchete "O HERÓI QUE NÃO SUPORTAVA A GUERRA" -, mais todo o material reunido para desmascarar a farsa do conselho da cidade. De certo, o senhor Esteves também não ouviria o som do telefonema que sobressaltou a jovem, no meio da madrugada, com a voz que lhe dissera o que a deixaria como num pesadelo que se inicia depois de terminar o sono

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A Vida dos Monumentos - parte 1

O céu aberto da manhã de mais um dia, dos quais chamamos úteis, ainda que não se saiba exatamente para quem, clareia a normalidade dos andamentos dos movimentos quase reeditados, os mesmos de ontem, semelhantes aos de anteontem, provavelmente um prenúncio de amanhã. Em mais um dia aquecido pelo sol incendiado, os corpos caminham tranquilamente, despreocupados e bem distribuídos na geografia projetada da cidade. Apesar da inexistência das nuvens, a temperatura não é elevada e o ar que entra não chega a fazer escorrer o suor. Porém, para todo esquema bem desenhado existe um rabisco possível, uma discrepância real. Algo que desdenha do todo, mas cuida para não ser apagado com uma borracha. O senhor Esteves corre o quanto pode. O melhor seria, ainda, dizer que se apressa, aflito, inimigo ele mesmo declarado da perfeição.

Sem saber por onde começar, mal sabendo que ninguém seria capaz, talvez não venham a saber que de tudo que aparece seu ponto de origem nunca se apresenta, ainda que se diga "eureka", traga-se alívio e ilusão, é acalentado pela jornalista que resolvera recebê-lo sem hora marcada. Lembrara de seu avô, a pouco falecido, a quem pouco visitava quando vivo. O trabalho não era pouco e o tempo, desconfiamos, está mesmo quase extinto. Movida assim, digamos, por motivos pessoais, recebe o ofegante senhor Esteves. "Beba uma água, senhor Esteves; acalme-se antes de falar". Ele consente e empurra goela abaixo aquela água pesada, pois apesar da garganta seca, o que o levou a beber foi puramente um sentido de estratégia, para evitar que saísse da bica da jovem o velho chavão de que os velhos são um tanto quanto teimosos, efeito da idade, diriam. Conquistaria assim, a atenção da moça e uma pré-credibilidade a seu infame discurso.terminadas as conversações, percebeu que não comovera a jornalista, que pedia que pensasse melhor , tentando convencê-lo do quão absurda era sua ideia, mas eufemisticamente falou, afinal, ela ainda respeitava os mais velhos. Ao fechar a porte para aquele senhor, pensou no que aconteceria se aquela notícia se tornasse publicada, em como reagiria aquela sociedade em ler que as estátuas da cidade eram literalmente feitas dos próprios modelos, "Homens estatualizados vivos!", sem contar a necessidade de inventar a palavra. Dali a pouco pegaria o telefone. Era hora de contatar; a quem, não se sabe. 

O senhor Esteves saíra do prédio desnorteado, desoesteado, deslesteado, dessulado. Uma ligeira vertigem o tomara de assalto, levando consigo as variadas cores, algumas delas, e escurecendo-lhe as vistas em plena luz da tarde. Passara o horário do almoço e nem mesmo o café da manhã, sua sagrada refeição, havia degustado. Pensou em retornar a sua casa, a pensão onde vivia e ultimamente sobrevive. (Todavia), o alarde criado nas últimas semanas por seu desatinado desespero levou o tal lugar um estado de alerta e aumentando ainda mais seu temor por um perigo eminente.

Após um pequeno desjejum, pois refeição não se poderia chamar, decidiu ir até seus pertences , em especial os seus documentos, a fim de extinguir-lhes todos para que dele não se tenha registro oficial. Não se estatualizaria um "Zé Ninguém" e, por outro lado, não se procura um foragido que não existe. A caminho de uma cidade outra, ao tempo de uma viagem sem rumo, pensaria numa nova identidade, nosso grande vício. Ora, mas não é exatamente isso o que fazem os conselheiros da cidade? Não são eles quem decide quem deve ou não ser transformado em estátua, em monumento, em patrimônio histórico e público, enquanto escolhem o que deve ser lembrado, o que vai para lápide, o que se tornará memória e o que se tornará esquecimento. Para este senhor as ideias não se aclaram, a fugacidade, a incerteza, a idade que nem mesmo a si já lhe confia. Na trama das teorias conspiratórias, passara pela entrada de sua rua e não se tinha apercebido, mas felizmente perdido por inteiro não estava. Ali, lembrava ainda do lugar o qual o acaso, ou o descompasso o levara.

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