Lá estava do outro lado da rua, o número
53, muro baixo e chapiscado, onde a cadeira de seu velho amigo velho já não
estaria. Foi dali, assustado, que vira seu amigo sair pela última vez, sedado,
levemente acordado, quase sonâmbulo, com um resquício de transe em seu olhar, como
que suplicando ajuda, como que clamando ser acreditado. Muitas vezes é o que
resta aos nossos velhos, bem o sabe senhor Esteves, pedir crédito para existir.
"Tarde demais", culpava-se, "isso não se poderá mudar". As
lembranças são dolorosas e essas a idade não faz esquecer. Recorda o dia em que
abrira o jornal e, estupefato, lera a notícia de que, numa
cidade vizinha, onde nascera seu velho amigo velho, uma estátua fora erguida
com a legenda "HERÓI DE GUERRA", entre outras homenagens. "Logo
ele, tão covarde", ria-se o senhor Esteves, "ele que odiava a guerra;
tudo por ser o primeiro", concluía Esteves, crendo que o amigo fora o
primeiro a desvendar a barbárie.
Mas caso o senhor Esteves dali não saísse
logo, tarde também seria para ele, pois o relógio permanece a circular, esse é
o regime de Cronos. Seu velho amigo velho nada havia
feito de relevante, da guerra muito mal participou, recusou-se a atirar,
recusou-se a fugir, recusou-se a ajudar. Depois de morto tornara-se o um senhor
da guerra. Já o senhor Esteves é um grande poeta, mesmo que há uns quantos
tempos não produza. Ele que se tornou agora um engodo para a economia, um
atraso para o progresso, um desvio para o axioma do "novo". Caindo em
si, do pouco que lhe resta, vai à direção de sua casa por um caminho diferente, dadas as circunstâncias,
nada mal. Ainda da esquina pode avistar ao longe, escorando-se junto ao poste
como um detetive de
um filme "meia-boca", porque convenhamos, Sherlock seria demasiada ingenuidade pelo que
se vê. Percebera com sua vista cansada que o perigo ainda não aperta tanto.
Seguira rezando, um pouco involuntariamente, ele que em divindades jamais
acreditou.
Adentrando a pensão lhe faltou à coragem
em encarar a senhora dona do lugar, que da cozinha já anunciava o cheiro de
queimado. Entretanto, as narinas que mal respiram não se dão conta dos odores
que lhe visitam, isto é, o senhor Esteves subiu diretamente a seu quarto. Entrou em seus aposentos
já tentando trancar a porta para que ninguém se aproximasse, mas as chaves se
escondiam bem, maquiavelicamente espreitando e esperando o desfecho
fatal, rindo-se silenciosamente com requintes de crueldade. Já indiferente à
porta, partira ávido atrás de seus comprovantes de existência. Picotou-os
todos, pelo menos os que encontrara, colocando todos os fragmentos numa sacola
plástica de mercado, sua melhor mala e quem sabe o melhor disfarce. Dali,
suando, escutara algo que parecia um automóvel a estacionar, uma ambulância,
como viria a conferir pela janela. Um triste enjôo nascera entre as entranhas, escalando todo o caminho por onde só se deveria descer. Os vômitos lhe saíam fracos; o senhor Esteves
escorava-se nas paredes buscando a porta que lhe tiraria dali, a porta que lhe
abriria um novo caminho de fuga, que lhe permitiria outro lugar para se estar e
aquele maldito lugar, outrora um lar, enfim abandonar. É trágico como um lugar em poucos minutos, outras vezes alguns dias, algumas declarações, pensamentos, com
muito pouco um lugar se transfigura completamente,
neste caso, para o pior.
Quem lhe amparou pelos braços enquanto
desfalecia fora um dos enfermeiros. Aterrorizado e perdendo os sentidos, o
senhor Esteves não pôde sequer xingar seu algoz. Por um lado se acalenta, é o
braço esquerdo, enquanto que, por outro lado, se afugenta, é o braço direito. A injeção tem efeito instantâneo. Dali até seu
destino, esse sim um nome bem a calhar, pois como tal não se escolhe, suas
últimas memórias seriam estilhaçadas tal qual os documentos rasgados, mais
fragmentadas que de costume. Numa das poucas imagens que lhe sobrara, já dentro
da suposta ambulância, vira ao lado de fora a jovem jornalista, neta de seu
velho amigo velho, com a cara de pesar, com a cara do dever cumprido, tudo em
apenas um rosto. Apagou novamente, apagou derradeiramente. Suas lembranças agora são
nossas. Nem mesmo lhe restou tempo para ver sua sedação total, seu desfeche,
sua bancarrota. Não veria também que sua pele seria arrancada antes mesmo do
falecimento oficial. Banhado em cobre, corrigidos os contornos antes da secagem
final. Já não batia seu coração quando foi tornado estátua. Não veria as
homenagens e nem as honras em praça pública. Não veria também que a jovem
jornalista não iria à inauguração do monumento no centro da cidade.
O que também o senhor Esteves não vira em
sua última troca de olhares com a moça, fora seu semblante desconfiado, talvez
por honra de sangue, talvez por veia jornalística, provavelmente pelos dois. Não
vira também o que aconteceria com a investigação que a jovem conduziria,
clandestinamente, e os anúncios que faria - como na polêmica manchete "O HERÓI QUE NÃO
SUPORTAVA A GUERRA" -, mais todo o material reunido para desmascarar a
farsa do conselho da cidade. De certo, o senhor Esteves também não ouviria o
som do telefonema que sobressaltou a jovem, no meio da madrugada, com a voz que lhe dissera o que a deixaria como num pesadelo que se inicia
depois de terminar o sono.