sexta-feira, 27 de abril de 2012

UM POUCO DE MIM

Estranho quando me chega esta sensação. Talvez seja até engraçado. Acontece que, se um corpo explode, o que está dentro sai e o corpo morre. O que acontece quando explode a alma? Ela morre? Se assim é, já não tem graça, de modo algum teria. Se não, além de engraçado, é também curioso. De quando em quando, sem saber como e vestindo a culpa no acaso, alguma intensidade distinta faz o corpo vibrar. De dentro para fora, de fora para dentro. Cada órgão vibra. A alma vibra. O embrolho é quando custa o fim. A alma transborda. Não há pele que a detenha, não há estômago que lhe embrulhe, não há coração que lhe fustigue, nem mesmo cérebro a prendê-la. Este sequer entende o que se passa. Quando muito vê. Daí ela sai e vai embora. Não pelos orifícios. Deixa para trás os olfatos gastos para cheirar perfumes outros. Esvai-se por todos os poros.

Ainda a vê, mesmo moribundo, apenas corpo, apenas olhos, o recém-zumbi. Somente o registro frio e desalmado. Ainda a vê individuar-se numa peça de roupa qualquer.  É o que se tem mais próximo, geralmente.  Daí, visto-a. Logo, não é mais o corpo que contém a alma, mas a alma quem detém o corpo. Talvez por isso se chamem uns aos outros de mascarados. Por vezes vestimos alma, mesmo não sendo para muitos, que fique claro. Terrível ou divertido? E se empresto a alguém, um amigo ou necessitado de momento? Tornar-se-ia, aquele que a usa, pele dentre almas.

Contudo, noutras vezes transbordo em copo. Pegam-me a encher; a traspassar meus limites. Bebem não a mim, mas em mim. Outras quantas vezes me deixam cair. Quebram-me. Passo a ser estilhaços. Julgam-me perigoso. Ainda pouco era a honra de sentir outras bocas a me conterem. Agora, um embrulho renegado. As vezes encarno facas, embora não ache nada prudente uma faca "almada". Já fui formiga. Apenas uma vez. O tempo não correu muito até ser esmagado. Estava demasiado próximo ao corpo de origem. Logo, logo fui chinelo. Era rotina ser pisado. Fui também onda cibernética. Viajei tão velozmente, tão velozmente que senti náuseas. Mas fui útil. 

Já me transbordei em água. Pouca água. Fui engolido. Naquela experiência inusitada, adentrei um corpo por lugares distintos. Em nenhuma das tantas vezes me encontrei com outra alma. Agora, fiz-me palavra. Ou fizeram-me. Não sei. Sei que o corpo que me escrevia, corpo que me criava, era morto. Morto-vivo. Talvez fosse o meu de origem. Importa muito pouco agora. Quando falo origem, é como o mundo, numa explosão. De lá surgi. Ao contrário de Clarice, incorporo palavra escrita apenas quando o corpo está morto. Assim passo, como agora. Tudo isso para já não ser daqui um pouco. É o tempo que dura a melhor das vidas, a proliferar-me sem fim, bastando uma leitura. 

Quando retorno ao que chamo corpo de origem, casa de passagem, jamais estou mais forte. Qual romantismo fajuto! Ainda, até hoje, jamais descobri antropofagias. Acontece sempre o contrário. Retorno mais ralo; encarno um corpo mais leve. Algo fica no caminho. Desconfio que se tenha um pouco de mim na água que se bebe. Um pouco de mim nas roupas rasgadas. No chinelo gasto, na faca cega, no bicho esmagado. Tem um pouco de minh'alma nas palavras escritas. Apenas um bocado. No mais, são outras as almas das letras, perdidas, que eventualmente se encontram e fundem aqui e ali, como agora. 

Ainda não sei. Engraçado ou terrível? Drama ou alegria? Nada posso concluir dessas tragédias. 

Tragédia!