terça-feira, 29 de novembro de 2011

NOS BURACOS DO TEMPO - parte 1

O tempo avança e com tamanha simplicidade faz correr os fatos uns após outros, concatenados estes, rumando o minuto seguinte. O silêncio de seu quarto parece suspenso do resto do mundo, distante e diferente da programação muda que segue na televisão que separa o breu do quarto de Rodolfo.  Acabam as notícias tristes, emendam-se os humorísticos e logo a seguir vêm os comentários do futebol com os gols da rodada e mais uns “quem sabe?” de comentários e especulações.
Já faz quase duas horas que o garoto foi para a cama, dentre as quais uns cinquenta minutos que sua mãe se convencera que ele já dorme e mais uns trinta que dormira ela mesma. Fora isso, há quinze minutos, percebera Rodolfo que a semana é quase igual à passada. Ele aguarda a chegada de sua vizinha, abençoadamente desanteciosa, que costuma chegar tarde da faculdade, sedenta por um banho que lave a canseira do dia, talvez apenas menos ávida que Rodolfo, que por vezes tem seus dias salvos por esses banhos de Betsabá.
De sua janela, estrategicamente dissimulada com sua persiana quase fechada por inteiro, afora por uma fresta na medida do globo ocular, não é possível ver o que se passa no banheiro de Aline – a vizinha –, mais precisamente embaixo do chuveiro. Ele espera pacientemente o tempo que leva o banho, somado a uns quantos minutos em que não sabe o que se passa, embora pense que seja o tempo de esfoliantes ou loções, esquecendo-se que a jovem da frente tem também suas necessidades fisiológicas por lá, as quais não detalharemos aqui por ausência demasiada de conveniência, imaginando também que isso interessaria ainda menos a um menino em plena puberdade. Nem todas as verdades merecem ser ditas, melhor seria imaginar outras ilusões, tal qual um menino de quinze anos.
O ciclo se repete como o próprio Rodolfo reparara. Ela entra em seu quarto e tranca a porta, pouco se importando com seu espaço de janela aberta, que é pouco, seja dito, mas que a tudo não esconde. Acende a luz do banheiro, vigiada por Rodolfo que, de cá, percebe pelo basculante a claridade se espalhar. Desliga sua televisão, sabendo bem, apesar da tenra idade, que o triunfo daquele que vigia está também em se converter em invisível. Ela retorna rapidamente ao quarto, já sem a blusa, ainda com sua saia longa e seu sutiã que a cobre. Apaga a luz do quarto e retorna ao banheiro, mais precisamente sua suíte. Ele percebe, após alguns instantes, uma breve queda de energia pela luz que se enfraquece e que dura o tempo em que se da o banho, pelo menos são as conclusões do menino, somado ao vidro embaçado rapidamente e, para constar, não é preciso ser tão inteligente para saber que ele não estava errado.
Aproxima-se o momento mais aguardado do dia. Rodolfo o desfruta lentamente, já tem alguma experiência na cena, como quando desembrulhava seus presentes de criança, calmamente, na certeza de uma alegria próxima. Ao retornar ao quarto, aparece mais próxima a sua própria janela, lugar onde talvez esteja sua cômoda onde guarda sua camisola. Ele a vê da cintura para cima, nunca soube se estaria nua dali para baixo. Os seios completamente desnudos o hipnotizam, formando uma paisagem com seus cabelos curtos e bagunçados, poucos centímetros acima dos ombros. Ali ela fica, meio de lado, meio de frente, com os seios à mostra num ângulo de quarenta e cinco graus. Está completamente estática e assim permanece alguns longos minutos.


(CONTINUA...)

domingo, 6 de novembro de 2011

UMA LOUCURA AVULSA


Lá vai ele novamente com seus pés calçados, ainda que levemente enlameados por conta das chuvas dos últimos dias. Fechou o portão sem me perguntar se era meu intento acompanhá-lo. Já não sei se me ignora de fato ou se a indiferença já o lançou a outras modas. O que em mim arde e me sufoca é seu silencio incisivo. Logo ele que sempre falou tão alto; logo nós que sempre fizemos tanto barulho juntos. 
Naqueles tempos havia prantos, sofrimentos, melancolias. Porém, hoje a mediocridade lhe sobra e seus sorrisos não passam de cumprimentos e convenções. Quase lhe bato nos ombros, mas não posso mais tocá-lo. Quero levitar a cama e deixá-lo cair do alto, mas não tenho mais forças. Sigo sozinho, com ele a frente, bato o pé, o único que me resta, pois o direito já me desapareceu há umas tantas semanas. A dor de não ser real é a que me visita; não tenho sangue, nem nunca tive. Não sou um zumbi, não me confunda. Tinha apenas com ele, mas não ardia.
Ele segue a rua anoitecida, deserta  já disse que chove? Pouco. Seu cabelo bem ornamentado ganha um tom orvalhado das gotas que não escorrem e teimam em não se diluírem por entre os fios negros. Sua roupa simetricamente sóbria e seu cheiro de banho recente quase o tornam outro. Sua sacola preta nunca mais carregou os sonhos chamados impossíveis que eu lhe dava para juntos subverte-los.  Guardava-os tão cuidadosamente. Vivia-os tão irresponsavelmente. Ele e eu, pela selva, pelos ares. Juntos de tantos outros. Às vezes outros demais. Os agentes, os teletransportados, os alienígenas, as escaladas à Torre Eiffel, os cochilos nas pirâmides do Egito. Deitara ao lixo, tempos desses, uns quantos pedaços de outro planeta que descobrimos numa viagem. Agora, na sacola preta de plástico, seguem apenas alguns filmes de bombas e explosões, dessas imagens fantásticas que nos fazem ver passivamente, sentados ao sofá, e que devolverá a locadora.
Ponho-me do outro lado da rua, mas seu caminhar é reto e estreito, de modo que seu olhar não lança luz sobre minhas piruetas. Passo em sua frente e sequer uma trombada se faz possível. Colocar-me-ia a voltar até sua casa e pôr fogo em tudo. Queimaria sua identidade. Mudaria os números dela. Abriria a tampa do vaso sanitário e poria abaixo toda aquela sanidade encapsulada e comprimida. Esfregá-los-ia até ao pó cano adentro com a descarga. Nada disso posso. Sou como um anjo da guarda que circunda e rodeia um homem, embora proteção não seja meu ofício. Posso estar apenas onde ele está. Existir, quando muito, apenas em ele me permitir. Pensando bem, parece que sou mesmo um zumbi, embora pareça não lhe fazer qualquer zumbido. Sou uma senhorinha buscando ganhar a vida com o corpo em plena Hollywood. Não o seduzo mais.
Não me vê. Não me sente o cheiro. Não exalo fragrância, mas há um cheiro. Agora se refere a mim como “delírio”, mas não suporto meu novo nome. “Não o tenho mais”, diz a quem se preocupa. Preferia “Raul”, pois assim me apresentei e assim me aceitou de pronto. Fiz de tudo um tanto e já passou do ponto de uma birra de imaginação mimada. Malabarismos com seus eletrodomésticos, levitação em frente à TV, meu preferido, diga-se de passagem. Mostrei o rosto em fumaça de café e fiz castelos animados de batatas-palha. Coube até em bolso de camisa para não ser abandonado.
Perdi forças sem estar velho. Quem me visse, caso fosse possível alguém ver a imaginação de outrem, olha que desconfio que fui motivo de risos para algumas crianças e até adultos, orgulho-me disso, claro fique, embora pareça invasão de privacidade, ou seria invasão de insanidade alheia, ainda que no fundo, no fundo, sejamos de quem olhar primeiro, ou até por último ora, o importante é sobreviver, enfim, não me dariam mais que 30 anos. Desculpem, ando demasiado fugidio neste parágrafo. Tenho a mesma idade desde sempre. Idade nenhuma. Sou corpo sem pele.
Até suicídio simulei, com ares de um suspense assustador de Hitchcock em alguns, noutras com as cores vermelhas da brutalidade visceral de Tarantino. Algumas vezes morri. Viu-me raras vezes em tudo. Nada além de sombras, quando muito retumbâncias. Era feliz e não sabia; vivia ainda. A última vez de que tive notícias de seu olhar foi ao atravessar uma densa avenida. Seus olhos brilharam, arrepiou-se a pele do coitado, não mais que cinco míseros e incontáveis segundos. Esboçou imediatamente um movimento com seu braço direito, o mais próximo a mim. Seus joelhos levemente se inclinaram como quem anuncia um desejo de correr, de sair rapidamente de um ponto a outro. Queria me salvar. Zangou-se naquele dia. Após conseguir travar seu próprio corpo da loucura de arriscar-se pelo seu “delírio – reitero que odeio o novo nome – franziu a testa, cerrou os olhos e seguiu a vida dando de ombros. Talvez pareça um exagero de minha parte, fazendo de um pouco muito. Imaginação? Não me peça para ser racional, já me basta aquele do qual falo.   
Está bem. Todos devem aceitar seu fim. Quem sabe seja melhor me extinguir num mundo onde não há espaços para uma imaginação ganhar a cena. Mortos por pílulas. Verdadeiro genocídio difundido por doutores. O maior crime do colarinho branco dos tempos. Restam-me os sonhos. Não me agrada lá, onde somos todos iguais e podemos quase tudo. Prefiro aqui. Em me pôr a caminhar por territórios rudes e quebrar-lhe os chãos feitos de concreto, nos lugares que não me são os de costume, os de longe de minha terra. Sou um nômade, oras.
Deito ao lado de sua cama em fins de noite e grito que não irei desistir. Minha voz inexiste. Bato palmas. Melhor seria ele desistir de me ausentar ou investir ainda mais pesado em seus remédios para que, assim, logo eu suma e nem mesmo em lembranças retorne. Ele quase dorme. No quarto escuro, vendo seu rosto sombreado, desencanta no canto de sua boca um sorriso. Só posso concluir que deseja me ensandecer. Estou fatigado, devo admitir.
Percebo que minha narrativa tomou o tom duma conversa. Isso, com você leitor. Falo eu, imaginas tu. Já começas a me dar vida. Tornastes-me real. Muito prazer! Como chamas?