sexta-feira, 23 de julho de 2010

Os Sete Pecados Capitais: Luxúria

Todos os domingos eram dias de virtuosa caridade. Após a missa, reuniam-se os padres, as freiras e os coroinhas, para realizarem as visitas. Escolhiam uma comunidade, possivelmente carente no que tange às finanças, mas que não fica bem nos dias que se chamam hoje, chamarmos de “favela”. Embora adornados os batismos, as condições de vida e sobrevida se conservam. Entendido o que foi dito, doravante continuemos.

Tudo pronto. O carro encarregado de transportar as cestas básicas que salvam o corpo, as roupas e os cobertores que alimentam a pele, e as boas-novas que aquecem as almas, já havia chegado. Foram assim os da paróquia para mais um evangelismo dominical. Lá, uns para um lado, outros para outro, alguns ainda para um terceiro. É que nestes lugares não faltam entradas outras, novos becos, como um labirinto desmedido para os do asfalto; uma cartografia lida para os de dentro.

Numa destas casas qualquer, bateu frei Tomás. Na verdade não bateu, por medo de derrubar a porta moribunda, causando assim um constrangimento logo na entrada. Chamou por palmas até ser atendido por uma mulher que, surpresa como quem espera algo demasiado aguardado, pediu que entrasse. A ordem era não adentrar sozinho em casa de mulher sozinha, sem sinal de presença masculina. Entretanto, talvez pelo olhar de súplica daquela mulher, ele cedeu. Esforçou-se ela para o deixar acomodado em seu humilde lar, enquanto apanhava a cesta com as roupas, e logo as levou para dentro. Conversaram.

Frei Tomás inspirou profundamente, encheu os pulmões de ar, buscando sentido, em desalento pela história de vida da moça. Não poderia saber o que viria. Ainda jovem, apenas 26 anos, embora não tenha vivido menos de 35. Seus 4 filhos não estavam em casa. Foi viúva uma vez aos 19. Abandonada outra vez, aos 25, mas não por motivo de morte. Após a prece, como uma palavra de consolo, o frei lhe disse que tudo iria melhorar. Então, ela pediu que o fizesse.

Desatou o laço que amarrava seu vestido. Despiu-se. Não era bela. Não havia formosura em seu corpo. O frei emudeceu. Pálido e avermelhado, tudo em perfeita sincronia. Ela queixou-se de uma vida sem prazeres e disse: “Nunca tive um homem tão bem apanhado em minha frente. Saudável, forte, bonito. Se veio trazer algo bom... que seja pleno”. Quantos sentimentos não percorreram a pele deste virgem frei... mas apenas afetos. Nada na consciência. Nenhuma explicação. Silenciado, por não haver o que dizer. Entendendo por consentimento o que cala, ela se aproximou, pegou sua mão e a pressionou contra os seios. Beijou-o. Convidativa, caminhou em direção ao quarto, deitando-se.

Muitas idéias podem se fazer deste momento. Carne fraca, pecado. A elaboração tardia de um Édipo, ou até mesmo uma vingança à castração psicanalítica. Proveito próprio. Filantropia. Enfim, várias teses e antíteses que não chegariam a qualquer síntese. Vício da razão, essa nossa tara em explicar tudo cartesianamente.

Fizeram amor. Ou, para fazer jus à linguagem sacra, ele a possuiu.

Obs.: Inspirado numa história real.



Bruno Costa

terça-feira, 6 de julho de 2010

Os Sete Pecados Capitais: GULA

Ele nunca teve muitas regalias na vida. Por outro lado, não se poderia dizer que não é vaidoso, ou até mesmo avarento, pois isso jamais lhe foi possível. Afinal, ele não é íntimo dos delírios, embora, talvez fosse esse um caminho menos duro, menos áspero, menos pesado. Na mais tenra infância, esse menino já passou por escassez severa, mas a fome, como se pode imaginar, é a mais cruel das misérias, porque ela traz consigo a denúncia de todas as outras.
Não foi instruído nos caminhos dos padres, nem mesmo em qualquer outra religião. Também não era ateu, pois os dogmas da ciência tampouco lhe chegaram as vistas. Simplesmente acredita em Deus, sem mais nomes. Somente isto, até porque mal não lhe faz. Apesar da pouca idade e da difícil "vida de cão", é capaz de contar algumas boas lembranças, motivos de orgulho, embora não convenha contar aqui e agora, para não fugirmos demasiado do contexto do texto proposto. Porém, suas boas memórias, juntamente com a saudade, são dos dias de natal, dos banquetes armados na Cinelândia por alguma igreja, a qual ele nem sabe ao certo o nome.
Tudo se inicia no pão à metro. Pão, milho, requeijão, alface, frango desfiado. Acompanhado de um gelado copo de refrigerante, muito bem aproveitado no verão de dezembro, embora os refrescos também o esperem. Bananas, sim, mais de uma. Bolo de fubá, bolo de cenoura, bolo de chocolate. Uvas, muitas uvas, com caroço e tudo. Uma pausa para respirar... Rabanada com canela, sem canela, só canela. Morango, antes da salada de frutas que fica por último. A bacalhoada também não pode ser esquecida, mas nessas horas não há amnésia que o acometa de tal sandice. Come de tudo, não se dando ao luxo de desdenhar de qualquer alimento. As ulteriores dores de barriga não lhe são problema. Alguns chegaram a lhe dizer que é consequência do pecado, do olho grande, da glutonaria. "Então o inferno é meu lugar", respondeu certa vez, sem tempo para pensar muito no que havia dito. Sábio ou louco?
De qualquer forma, algo ele havia reparado, ainda que não lhe ocorresse nenhuma explicação lógica para tanto. Perdoemos. Ainda é jovial seu modo de pensar. Todavia, voltando ao texto, como bom observador, percebeu que a maioria das pessoas gordinhas que conhecia ou via, demonstravam certo constrangimento com sua aparência. Quem sabe o tenha sensibilizado este "fenômeno" pelo fato de que era desejo seu, ainda que por efeito, ou melhor, principalmente por efeito, ser gordo. Que boa seriam muitas noites de banquete num único ano. O que ele não sabe é que a indústria do bem-estar se casou com a indústria da beleza, e dessa união nasceu um filho único: a magreza.
Enquanto isso, pela cidade, nos 365 dias do ano, muitos possíveis banquetes não se tornam reais. Num apartamento próximo, Gisele duramente diz "não" à mesa. Fernando se controla para manter o teor de gordura no mínimo. Giovana enfia o dedo na garganta e extrai suas "impurezas". Rogério não sai de casa por não ter roupas que lhe caiam bem e permanece trancado em casa, comendo culpa, devorando-a.
De repente, em um dia qualquer, nosso personagem principal entenda isso. Embora, por motivos de conter uma revolta ou um desgosto que denuncie a desventura de ter nascido em lar desprovido, seria melhor não...
Bruno Costa