Nasceu a tão esperada criança. De surpresa malograda, lá se foi a esperança de um macho que jamais viria. Menina linda, desde cedo despertava expectativas. Pouco depois e ainda cedo foi iniciada nos serviços de mulher, tornando-se moça. Encarnou desde então, dotes de uma amante, enlouquecendo e aquecendo seus conterrâneos. Amigos de escola, trabalhadores de oficina, desconhecidos, acamados, internados, vovôs enguiçados, as tiazinhas viúvas... foram muitos. Consolou viúvas, sorriu com viciados, inquietou os desquitados e também os casados; perdeu-se ainda com os errantes. Todos diziam que em toda a cidade nem meretriz houve com histórias semelhantes entre tantos lençóis. Era maldita na cidade, denunciava a fragilidade de famílias muito unidas, a inquietude das carolas, a carência das carochas, a impotência dos desterrados. Era motivo de chacota, de tapas e escarros, de pedras e porradas. Era ré dos crimes todos da cidade. Todo o inferno cabia em seu colo.
Certo dia um comandante, arrumado, letrado, ilustrado, armado e detentor de grande poderio militar, decidiu a velha história de Sodoma ressuscitar. Era tudo iniqüidade, hipocrisia, pilantragem, que a esta cidade lhe restara seu final. Todo mundo em polvorosa pranteava sua hora; nem seria necessária uma cova, pois o fogo deixaria apenas o fedor de enxofre. Todavia aquele temido homem tinha um calcanhar de Aquiles. Nem mesmo ele, do alto de seu coturno, resistiu à bela jovem. Desejou-a de imediato, em troca de uma trégua até pouco esvaída.
A cidade olhava a moça, implorando como quem pede perdão e, num coro fumegante lhe cantou em contrição. De vagabunda a redentora, ela jamais sonharia, ainda que com muita imaginação. Teria seu dia de rainha, tudo mudaria. Comovida e adornada pela vizinhança, contra seu desejo quase intolerante por linhos finos e barba demasiado feita, engoliu seco, depois engoliu um seco, um quente, e aceitou assim, a proposta indecorosa e obscena. Resistiu ao nojo e se entregou; o homem encharcado de suor a possuía com brutalidade. A cidade esperava e cochichava: “ela está acostumada”, “no fundo está realizada”. Mal se deu a alvorada e o homem se vestia, levando consigo a ameaça de bancarrota daquela cidade.
Respirando então, depois da noite sofrida, antes de estar de toda tranqüila, ainda lá dentro ouvia os ecos da cidade: “ela deve estar se achando”, “ela é uma atrevida”, “pensa que é uma deusa”, “nós não vamos nos curvar”, “nunca iremos perdoa-la”, ”um acerto não lhe susterá os pecados”. Sua paz já lhe escapava, porque é hora e seus vizinhos não demoram. Era novamente o mau e o fel daquela gente.
Bruno Costa
PS1: Texto inspirado na música "Geni e o Zepelim", de Chico Buarque.
20 comentários:
Gostei muito do seu poema em prosa.(rsrs)
Além de astutamente organizado, conteudo de muita qualidade.
A hipocrisia e o jogo da convencionalidade é atual, ridiculo e constante.
Acredito, muitas vezes, que é necessário para a população encontrar alguém que simbolize o mal, o que deve ser combatido. Talvez para que possam aumentar sua estima própria, ou para fantasiar-se na sua infantil ilusão de heróis. Ou talvrz por pura maldade e inveja de quem não tem vergonha do que é.
Ps: Obrigada pela divulgação aii do lado..
rsrs.
Encontramos muitas vezes pessoas má na vida, mas temos de lutar contra elas, da melhor maneira possível!
Sucesso com o blog!
Joga pedra na geni, não é? Sinceramente quando comecei a ler soube de cara que se tratava da música do Chico...
Até.
maaaaaaaaaaaaaaaaassa
show !!! muito bom
http://blogdocharque.blogspot.com/
O Melhor e + Arretado Blog do ... Meu Bairro!!! =D
Legal, você escreve muito bem e sabe por sentimentos verdadeiros no texto.
PS.: Segundo o filme e a peça teatral "O Òpera do Malandro", na qual essa música faz parte da trilha, Geni é um travesti.
Mas tens licença poética! rsrrs
abraços
www.estoriasgosadas.blogspot.com
Está bem legal, fechadinho o enredo. contudo, no meu caso, textos assim, muito rimados, não me agradam muito.
Eu acho legal conseguir extrair conteúdo de obras artísticas, é uma antropofagia que é a marca da cultura pop, e não há nenhum espaço artístico mais pop do que o blog... muito do que escrevi também parte de um vislumbre anterior. O importante é a arte saber sempre reproduzir a si mesma.
Fiquei tatibitate com a fiel inspiração...sou amante das obras de Chico...
Belo texto, belo blog!
Parabéns!
Ótimo post! Parabéns ;)
Muito bom o texto, muito criativo e com belas palavras e ainda inspirado em Chico. Adoro ler blogs, passo horas e horas fazendo isso, e quando encontro coisas com qualidade comento mesmo. Tambem escrevo e gostaria de opinioes sinceras de pessoas experientes, se estou no caminho certo. Se pudesse visitar meu blog aki vai o endereço http://idiotaemingles.blog.com/
Obrigado e sucesso com o blog. gostei de muitas coisas o teu talento é indiscutível.
Joga pedra na Geni!!!
Adoro Chico, como sempre inspirando boas letras.
Gostei do seu poema, e de ter transformado nossa protagonista em mulher, já que na música ela é travesti.
Boa semana.
Ela é uma libertina, quem as vezes não gostaria de despir-se das "moralidades" que atire o primeiro teclado...rs
Belo texto seu moço! hum
Ah, a evangélica / bem / ela tem um tanto de imperialismo nas palavras / quase uma senhora dos poneis alados, ingnorei, digo/ bloquiei.
Amar é quer bem sempre, e conviver com as diferenças e nunca chamá-las de defeito.
=*
ah mtu bom adorei msmo
exelente o texto, ótima idéia de escrever esse conto inspirado na Geni, q representa o lado escuro da sociedade, aquilo q se quer esconder embaixo do tapete, o maxismo milenar, q afeta a sociedade... gostei muito!
ótimo post e blo, parabéns!
Oi, brigada pelo post no meu blog... deculpa a demora para responder, ando sem tempo de postar muito (tb, ngm le msmo!).
Estou dando uma olhada nos seus contos, gostei mto, bacana o post baseado na música!
Até mais
Fazer relação entre vida, música e poesia não é uma atividade fácil. Parabéns pelo texto e continue com essa criatividade renovadora. É interessante pensar, a partir desse post e da música de Chico, que sim as pessoas ocupam lugares distintos nessa história breve que é a vida (acusada e aclamada) e possuem diferentes discursos (prostituta e salvadora) de acordo com o contexto socio-politico-temporal; de acordo tb com os encontros e as forças q nos atravessam constantemente mudando e transformando nossos olhares diários!!!!
Ótimo texto! Ótima reflexão!!!
Beijo!!!
Escreveu muito bem... Cheio de rítimo e até rimado!
Adoro essa música, muito boa mesmo!
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