Lá vai
ele novamente com seus pés calçados, ainda que levemente enlameados por conta
das chuvas dos últimos dias. Fechou o portão sem me perguntar se era meu
intento acompanhá-lo. Já não sei se me ignora de fato ou se a indiferença já o
lançou a outras modas. O que em mim arde e me sufoca é seu silencio incisivo. Logo
ele que sempre falou tão alto; logo nós que sempre fizemos tanto barulho juntos.
Naqueles
tempos havia prantos, sofrimentos, melancolias. Porém, hoje a mediocridade lhe
sobra e seus sorrisos não passam de cumprimentos e convenções. Quase lhe bato nos ombros, mas não posso
mais tocá-lo. Quero levitar a cama e deixá-lo cair do alto, mas não tenho mais
forças. Sigo sozinho,
com ele a frente, bato o pé, o único que me resta, pois o direito já me
desapareceu há umas tantas semanas. A dor de não ser real é a que me visita; não
tenho sangue, nem nunca tive. Não sou um zumbi, não me confunda. Tinha apenas
com ele, mas não ardia.
Ele segue
a rua anoitecida, deserta – já disse que chove? Pouco. Seu cabelo bem
ornamentado ganha um tom orvalhado das gotas que não escorrem e teimam em não se
diluírem por entre os fios negros. Sua roupa simetricamente sóbria e seu cheiro
de banho recente quase o tornam outro. Sua sacola preta nunca mais carregou os
sonhos chamados impossíveis que eu lhe dava para juntos subverte-los. Guardava-os tão cuidadosamente. Vivia-os tão irresponsavelmente.
Ele e eu, pela selva, pelos ares. Juntos de tantos outros. Às vezes outros
demais. Os agentes, os teletransportados, os alienígenas, as escaladas à Torre Eiffel,
os cochilos nas pirâmides do Egito. Deitara ao lixo, tempos desses, uns quantos
pedaços de outro planeta que descobrimos numa viagem. Agora, na sacola preta de
plástico, seguem apenas alguns filmes de bombas e explosões, dessas imagens fantásticas
que nos fazem ver passivamente, sentados ao sofá, e que devolverá a locadora.
Ponho-me
do outro lado da rua, mas seu caminhar é reto e estreito, de modo que seu olhar
não lança luz sobre minhas piruetas. Passo em sua frente e sequer uma trombada se
faz possível. Colocar-me-ia a voltar até sua casa e pôr fogo em tudo. Queimaria
sua identidade. Mudaria os números dela. Abriria a tampa do vaso sanitário e
poria abaixo toda aquela sanidade encapsulada e comprimida. Esfregá-los-ia até
ao pó cano adentro com a descarga. Nada disso posso. Sou como um anjo da guarda
que circunda e rodeia um homem, embora proteção não seja meu ofício. Posso
estar apenas onde ele está. Existir, quando muito, apenas em ele me permitir.
Pensando bem, parece que sou mesmo um zumbi, embora pareça não lhe fazer
qualquer zumbido. Sou uma senhorinha buscando ganhar a vida com o corpo em
plena Hollywood. Não o seduzo mais.
Não me
vê. Não me sente o cheiro. Não exalo fragrância, mas há um cheiro. Agora se
refere a mim como “delírio”, mas não suporto meu novo nome. “Não o tenho mais”,
diz a quem se preocupa. Preferia “Raul”, pois assim me apresentei e assim me
aceitou de pronto. Fiz de tudo um tanto e já passou do ponto de uma birra de imaginação mimada. Malabarismos com seus eletrodomésticos, levitação em
frente à TV, meu preferido, diga-se de passagem. Mostrei o rosto em fumaça de café e fiz castelos animados de batatas-palha. Coube até em bolso de camisa
para não ser abandonado.
Perdi forças
sem estar velho. Quem me visse, caso fosse possível alguém ver a imaginação de outrem,
olha que desconfio que fui motivo de risos para algumas crianças e até
adultos, orgulho-me disso, claro fique, embora pareça invasão de privacidade,
ou seria invasão de insanidade alheia, ainda que no fundo, no fundo, sejamos de
quem olhar primeiro, ou até por último ora, o importante é sobreviver, enfim,
não me dariam mais que 30 anos. Desculpem, ando demasiado fugidio neste parágrafo. Tenho
a mesma idade desde sempre. Idade nenhuma. Sou corpo sem pele.
Até suicídio
simulei, com ares de um suspense assustador de Hitchcock em alguns, noutras com
as cores vermelhas da brutalidade visceral de Tarantino. Algumas vezes morri. Viu-me
raras vezes em tudo. Nada além de sombras, quando muito retumbâncias. Era feliz
e não sabia; vivia ainda. A última vez de que tive notícias de seu olhar foi ao
atravessar uma densa avenida. Seus olhos brilharam, arrepiou-se a pele do
coitado, não mais que cinco míseros e incontáveis segundos. Esboçou imediatamente
um movimento com seu braço direito, o mais próximo a mim. Seus joelhos
levemente se inclinaram como quem anuncia um desejo de correr, de sair
rapidamente de um ponto a outro. Queria me salvar. Zangou-se naquele dia. Após conseguir
travar seu próprio corpo da loucura de arriscar-se pelo seu “delírio” – reitero
que odeio o novo nome – franziu a testa, cerrou os olhos e seguiu a vida dando
de ombros. Talvez pareça um exagero de minha parte, fazendo de um pouco muito.
Imaginação? Não me peça para ser racional, já me basta aquele do qual falo.
Está bem.
Todos devem aceitar seu fim. Quem sabe seja melhor me extinguir num mundo onde
não há espaços para uma imaginação ganhar a cena. Mortos por pílulas. Verdadeiro
genocídio difundido por doutores. O maior crime do colarinho branco dos tempos.
Restam-me os sonhos. Não me agrada lá, onde somos todos iguais e podemos quase
tudo. Prefiro aqui. Em me pôr a caminhar por territórios rudes e quebrar-lhe os
chãos feitos de concreto, nos lugares que não me são os de costume, os de longe
de minha terra. Sou um nômade, oras.
Deito ao
lado de sua cama em fins de noite e grito que não irei desistir. Minha voz inexiste. Bato
palmas. Melhor seria ele desistir de me ausentar ou investir ainda mais pesado
em seus remédios para que, assim, logo eu suma e nem mesmo em lembranças retorne. Ele
quase dorme. No quarto escuro, vendo seu rosto sombreado, desencanta no canto
de sua boca um sorriso. Só posso concluir que deseja me ensandecer. Estou fatigado, devo admitir.
Percebo
que minha narrativa tomou o tom duma conversa. Isso, com você leitor. Falo
eu, imaginas tu. Já começas a me dar vida. Tornastes-me real. Muito prazer! Como chamas?
49 comentários:
Adorei seus textos...saode autoria sua? parabens
Gostei do seu conto e até onde pude entender parece que não se trata exatamente de uma pessoa e sim a narração do sentimento falando por si mesmo como se sente em relação a pessoa que o ``carrega`` (pra não repetir a palavrar sente e assim evitar um trocadilho desnecessário).
Bom, em outras esse desabafo da loucura avulsa parece-me até algo metalinguístico. Legal.
abraços
Mais um texto de qualidade... Gosto dos seus contos!
Vc mesmo que escreve? se for, está de parabéns, adorei!
tá rolando sorteio no blog, participa http://nacaoesmaltada.blogspot.com/2011/11/1-sorteio-do-blog-100-fatias-de-fimos.html#comments
Meu nome é Brian, senhor anjo cujo proteger não é seu ofício...
O menino que fecha o portão e sai a caminhar na chuva, onde está?
Tens pouca permissão para existir e mesmo entre as frestas da imaginação, não se concluí nada.
Me parece um caso perdido.
Um simples monólogo...
www.mentepervertidagm.blogspot.com
Bom o texto!
Olhei o restante do blog superficialmente, mas gostei das ideias!
Beijos
http:// joycebc.blogspot.com
Verdade, também curto seus contos, ótimas histórias daqui *-*
Muito bom o conto, adorei o "sentimento" (imaginação?) personificado. Você escreve espetacularmente bem!
muito bom seu blog.
http://portaldalinguainglesa.blogspot.com/
Apoio os escritores e suas loucuras (avulsas?). Dela provém a criatividade.
Abraço!
http://alteregodonuti.blogspot.com/
http://portaldalinguainglesa.blogspot.com/
JA HAVIA COMENTADO NESSE BLOG. MUITO LEGAL. LEIO SEMPRE.
Seus textos são mto bons! Continue aprimorando q ficara cada dia mais legal!
abraços
seus textos são mto legais.
estou indo seguir para ficar atualizada das novas post's!
beeijo beeijo ;*
retribui: http://ilovetubes.blogspot.com/2011/11/diariodanick-8.html
Muito legal ;D
HUm... não conhecia aqui não, interessante esse conto/historia, mostrando o sentimentalismo.. hm..
hihi
parabens!!
kisu
Muito legal :D
muito bom seu texto parabésn
provasetrapacas.blogspot.com
Um delírio de um esquizofrênico, seria isso? De qualquer forma, o jeito com que você narrou, o desfecho, ficaram ótimos. Devo dizer que lembre-me do estilo de Oscar Wilde ao ler seu breve conto (ou seria um monólogo?).
Estou seguindo aqui. Bjo.
http://miasodre.blogspot.com/
Um clima de melancolia no ar, um clima sombrio... adorei seu texto!
http://dozeedoze.blogspot.com/
Achei muito interessante a narração do ponto de vista de personagem imaginado por outra pessoa. No começo achei que fosse o amigo imaginário de uma criança, mas depois vi que era um delírio esquizofrênico. Gostei do desfecho. Finalmente "Delírio" encontrou algo em que existir.
Já comentei esta postagem mas acabei relendo, a reação não foi diferente, ainda tento encontrar o menino que saiu na chuva em algum lugar dentro de mim mesmo.
Mais uma vez, minha imaginação ficou estimulada por este texto...
Gostei muito :)
To seguindo ! Seu blog parece interessante. Depois volto com mais calma :D
http://blogadosaki.blogspot.com
POXA... ACHEI MUITO LEGAL!
ELABORAÇÃO PERFEITA!
Muito legais os textos, parabéns!
São todos de sua autoria?
http://thebookofmydreams.blogspot.com/
Gostei do BG do blog
visita? http://www.afrodittes.net/
Como os textos são extensos, não terei tempo de ler os outros posts... percebi que esse texto sim, deu vida... vida um livro quem sabe?!
Prazer todo meu! Fafá
Texto muito bom, parabens!
É atravessando que chegamos do outro lado
Mesmo com os pés cheios de lama.
bom texto
provasetrapacas.blogspot.com
Bela narrativa... co linguagem bem peculiar!!
Parabens!!
Abraço do POETA BASTARDO
http://poeta-bastardo.blogspot.com/
Ótima narração. Me fez imaginar esse personagem atuando em seu imenso delírio.
http://odespertardumsonho.blogspot.com/
Bem intenso esse texto né?
***
Escrevo pro: http://cafedefita.blogspot.com/
(Patrícia Araújo - Colaboradora)
Confesso que me dá vontade de conseguir escrever algo do tipo.
belo texto, quem dera hehe
Provasetrapacas.blogspot.com
Bruno, vc é mto bom, sinceramente. Escreve com emoção, riqueza de detalhes, sentimento...
Sucesso, viu?!
Bjus
Pri
www.mmdesaltoalto.blogspot.com
Legalll
Game para celular
INTERESSANTE!
:)
seu texto me lembrou um pouco o estilo do italiano italo calvino no clássico "se um viajante numa noite de inverno". como vc mesmo disse, depois de ler tudo isso isso, "restam-me os sonhos".
abraço!
Nooossa interessantíssimo seu blog parabéns...os textos são de uma qualidade incrível!!! Grande abraço!!! Agradeço sua visita tbm!!!
http://alternativassonoras.blogspot.com
Você escreve muito bem, parabéns! bj
Olá,Bruno.Essa é minha primeira visita ao blog.Vi seu link em outro blog e resolvi vir conhecê-lo.Adorei seu blog e já estou lhe seguindo.Seu blog é muito bem organizado e suas postagens muito bem elaboradas.Você escreve maravilhosamente bem!
Te convido a conhecer meu blog e segui-lo também.Aguardo sua visitinha!
Bjs!
Zilda Mara
http://www.cacholaliteraria.blogspot.com
Ja estou seguindo, retribui? http://luhkarooline.blogspot.com/
texto bem grande! lí pouca coisa e achei bom
http://rocknrollpost.blogspot.com/
Teu texto começa nos envolvendo aos poucos, nos prendendo e nos amarrando sem que percebamos! Apesar de longo devoramos come se fosse um curta rima infantil,pois somos deslocado do tempo, e nossa percepção deixa de habitar o mundo a fora para viver entres essas linhas!!!
Parabéns!!
Onde que eu vou pra comprar um livro teu? Sério! Hahaha. Tu escreve muito bem. Parabéns.
:*
http://hey-london.blogspot.com
Muito bom!
http://futeblog-blogmaster.blogspot.com/
Muito bom texto, está de parabéns! Nossas vidas se perdem em meio a sentimentos enlouquecedores e desejos incontroláveis, nessa luta contra a gente mesmo, quem se joga desfruta até o permitido e quem se reprime acaba por se proibir de ser quem verdadeiramente é.
Desde já te seguirei, se puder visitar e seguir o meu tb, lhe agradeço!
http://www.akonrado.blogspot.com.br/ (Faz Parte de Mim)
Adorei é um texto que prende mesmo, parabéns pelo seu estilo de escrita.
É muito bem feita.
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