A porta do armário está entreaberta,
sugerindo apenas uma sombra negra. Ao lado, os lençóis estão embaralhados numa
cama ainda por fazer, sem travesseiros. Ele olha por todos os cantos, fareja o
ar insistentemente. Talvez sinta algum perfume, talvez procure um. Desvia de
alguns cabides pelo chão, não são muitos. Na escrivaninha, a gaveta aberta não
traz nada além de duas canetas sem tampa, um lápis, um papel amassado e uma
caneca minúscula, onde se pode ler Hasta
la victoria siempre/Havana. Vai até o banheiro, de basculante fechado e
chão úmido, com algumas gotas de água. Ele cheira aquelas gotas e lambe as
pequenas poças que se formaram dentro do boxe. No meio do corredor um par de
chinelos velhos e amarelados – quem sabe um dia fora branco? Diante dos
chinelos ele se detém, mordisca um dos pés e o carrega por apenas três passos.
Então começa a perambular pela casa, do
corredor para a cozinha, da cozinha para a área de serviço, de volta para a
cozinha e de lá para a sala. Vai até a porta, arranha, bate, faz força, mas não
consegue nada além de lhe descascar alguma tinta. Resmunga qualquer coisa
ininteligível. Começa a chorar. Primeiro discretamente. Logo em seguida aumenta
o volume. Algum vizinho próximo poderia ouvi-lo em seu aparente infortúnio,
barulhento a esta altura. Ele volta para o quarto. Prefere se acomodar na cama,
atracado com os lençóis, revirando-se de um lado para o outro, bagunçando a
manhã sem companhia. A janela aberta permite a entrada de uma ventania que o
faz parar por um instante. Imóvel, quase fecha os olhos, cessa a reviravolta e
também os resmungos. Está de barriga para cima, com seu sexo exposto.
Levanta-se, vagarosamente vai até a beirada da cama, olha para baixo e retorna
até a cabeceira. Cheira de perto, bem perto, e lambe a madeira
ininterruptamente.
Dentro de casa, apenas o som de seus
movimentos. Fica na sala, sentado ao lado da porta, ouvindo o tique-taque do
relógio. Boceja, deita-se, troca de posição por diversas vezes. Levanta-se,
espreguiça o corpo com a traseira para o alto ao mesmo tempo em que boceja,
deixando escapar um grunhido agudo, mas baixo. Sobe no sofá e se deita. Após
alguns latidos pela vizinhança, rapidamente vai até a janela fechada de vidros
canelados e se debruça. Os raios de sol incidem diretamente onde está. Desce e
segue até um pote azul ao chão da cozinha, onde bebe bastante água, deixando
escorrer um pouco até seu peito. Próximo ao pé da mesa vê um montinho de ração
com restos de comida. Cheira, lambe e come uns bocados.
No banheiro, adentra o boxe e urina
longamente, enquanto o líquido escorre em sua própria direção. A porta da sala
se abre. Ele corre até lá e late incessantemente para alguém no escuro. A luz
da sala é acesa. Um velho caminha até a estante da TV e apanha um papel dobrado
sob um jornal, onde a manchete noticia a “ofensiva de militares aos comunistas”;
o homem desdobra o papel, lê, amassa e joga ao chão. Ele acompanha o velho até
a cozinha, latindo menos, cheirando-o mais. O velho retorna com um saco grande
de ração em mãos e abre a porta da sala. Ele fica sentado ao chão, de orelhas
empinadas enquanto o homem fala qualquer coisa. A porta ainda está aberta, a
luz apagada e o velho, já ao lado de fora, assobia uma única vez. Embora
abanando o rabo, sai lentamente ao seu encontro.